As formas do jazz
Escrevo minutos após a morte de Chick Corea ter sido anunciada. O tema da crónica ia ser outro mas a notícia obrigou a mudar de rota. Era uma das maiores figuras da história do jazz. Corea substituiu Herbie Hancok na banda de Miles Davis, com quem gravou álbuns fundamentais como In a Silent Way e Bitches Brew, mas foi depois de ter deixado a banda do mestre que cimentou um nome e um estilo próprios. O jazz de fusão deve-lhe a paternidade
Corea esticou os limites do jazz ao funk, à música latina e brasileira, ao flamenco e sobretudo ao rock, liderando essa corrente fortíssima da década de 70 com os Weather Report e a Mahavishnu Orchestra de John McLaughlin. Era um virtuoso, improvisador de primeira classe e pianista de recursos técnicos ímpares. Um gigante, que ainda em 2020 se apresentava vivo e pleno no álbum Plays, apenas travado por uma forma rara de cancro, descoberta tarde demais para ser erradicada do corpo.
Chick Corea participou num tempo de grande vitalidade e importância do jazz, quer como frente de combate essencial na luta pelos direitos civis do negros e libertação da comunidade, quer como zona franca de experiências, relações e emoções aventureiras, lúdicas, espirituais, politizadas, eruditas ou populares. Tal como agora se verifica, aliás. Desde a década de 70 que o jazz não era tão vital, relevante, próximo da sua comunidade e democrático.
Lembrei-me de uma conversa de há poucos anos com um bom amigo, quando o corpo do novo jazz começava a tomar forma a partir de Londres, depois de músicos como Robert Glasper e Kamasi Washington, e álbuns como To Pimp a Butterfly de Kendrick Lamar terem reintroduzido o jazz à geração da Internet. Ambos concordávamos sobre o momento de grande vitalidade mas ele apostava numa trajetória de crescimento semelhante à do hip-hop na última década, enquanto eu era mais prudente quanto ao apoderamento dos palcos principais dos grandes festivais. Não apostámos, porque na amizade não há vencedores nem derrotados, mas a face visível da moeda é a cara e não a coroa. Felizmente, mas nem precisava de ser de outra forma.
Criativamente, nenhum outro género tem demonstrado tanta pujança nos últimos anos e isso deve-se às vivências pessoais e musicais da geração de Shabaka Hutchings, Theon Cross, Moses Boyd ou Nubya Garcia (uma saxofonista, coisa rara), em Inglaterra, mas também de Makaya McCraven, Jaimie Branch ou Christian Scott nos EUA, entre tantos outros. A forma do jazz actual é ampla, livre e associativa. Com o afro-beat (Sons of Kemet), o trip-hop (Moses Boyd), o rock progressivo (Comet Is Coming), a feminilidade (Nubya Garcia), o hip-hop (Makaya McCraven) ou o r&b (Kassa Overall). As hiperligações são extensivas e confirmam que o molde prevalecente é o grande mantra universal e intemporal do jazz: a liberdade.
As boas noticias não chegam apenas de Londres ou de Los Angeles. Outras estirpes locais como o recente Indaba Is, sobre uma África do Sul pós-Apartheid, e Seven Wonders: New Movements In Australian Jazz & Soul são sintomáticas de um fogo a deflagar em diferentes latitudes e direcções com setas a apontar para identidades locais. Em Portugal, os sinais ainda são tímidos. Azar Azar, Mazarin e Yakuza estão a importar esta tendência mas o álbum mais fascinante e portador de uma identidade é Drawing Circles do colectivo Chão Maior, liderado pelo trompetista da Suazilândia radicado em Lisboa há alguns anos Yaw Tembé. Nele, escutam-se ecos de Kamasi Washington mas também de Sun Ra e Ornette Coleman. E ouve-se África, um guia espiritual inevitável para o jazz português afirmar uma voz própria. Há que não esquecer também o destemor de Bruno Pernadas, a solo e como parte do colectivo Montanhas Azuis com Norberto Lobo e Marco Franco, também eles músicos ímpares no panorama nacional.
Além da força inventiva e democratizadora, o jazz é ouvido e compreendido. Quando todas as camadas envolventes da criação — fotos, vídeos, roupas e coreografias — atraem a interacção para o olhar e diluem a música num espaço público cacofónico -, no jazz esse compromisso é invulgarmente transparente e embora prevaleça na comunidade melómana, perdeu a exclusividade que divorciou o jazz da cultura popular nas últimas décadas. E tudo isso é mais sincero e consistente do que ir à Liga dos Campeões uma época e na seguinte lutar para não descer de divisão.