As novas influências do expressionismo alemão no cinema
Durante a Primeira Guerra Mundial, com a Alemanha completamente isolada do resto do mundo, o governo alemão proibiu a importação de películas estrangeiras. Esta medida levou a um aumento exponencial da produção cinematográfica nacional e, em menos de quatro anos, entre 1914 e 1918, os germânicos ampliaram o seu reportório cinematográfico e conquistaram audiências internacionais.
As décadas que se seguiram ficaram marcadas por um movimento artístico que ficou conhecido por “expressionismo alemão”, que representa, exterioriza e enaltece a subjetividade através do cinema e é, até hoje, uma grande referência na sétima arte.
O expressionismo alemão
Apesar da derrota no conflito armado e da ruína procedente do Tratado de Versalhes, a indústria cinematográfica alemã tornou-se uma das mais relevantes no panorama mundial, apenas ultrapassada pela produção norte-americana.
A partir de 1920, com a formação da UFA (Universum Film Aktien Gesellschaft), as produtoras e sociedades de cinema alemãs uniram esforços para despertar o interesse de uma nova e vasta plateia.
Fiel aos seus princípios estético-narrativos, a produção alemã procura conjugar os saberes e a experiência de algumas das mais brilhantes mentes de áreas como a arquitetura, pintura, literatura e teatro para edificar um novo movimento cultural de vanguarda.
É através de um contexto marcado pela grotesca ferida da guerra, precaridade, fome e doença, que o cinema alemão encontra o “expressionismo”, um movimento artístico cuja origem coincide com o progresso científico e com os desenvolvimentos nas áreas da psicanálise (Freud), física (Einstein) e filosofia (Bergson), que possibilitaram uma nova contemplação da subjetividade.
O movimento expressionista apresenta a desfiguração do real como forma de interpretar subjetivamente o mundo. Os traços expressionistas retratam a natureza como refém e reflexo das angústias e terrores do Homem. A pintura “O Grito”, de Edward Munch, ou o conto “Metamorfose”, de Franz Kafka, foram algumas das suas principais produções desta corrente artística.
À semelhança da pintura e da literatura, o expressionismo surge no cinema alemão como resposta aos medos e apreensões que se faziam sentir e começa a manifestar-se através de jogos de luz, contraste acentuados e personagens enclausuradas na sua própria ânsia de libertação.
Os décors estão repletos de perspetivas distorcidas, quase oníricas, e são trabalhados como autênticas manifestações do psicológico das personagens. Fortes contrastes produzem silhuetas assombrosas que percorrem um mundo que celebra e acolhe o peculiar, o terror e a distopia. Conforme Lotte Eisner, os cenários do expressionismo alemão são autênticas “paisagens impregnadas de alma”.
As dicotomias da iluminação manifestam uma carga simbólica que enfatiza a luta entre o bem e o mal, enquanto as sombras e os vultos que habitam a tela se tornam manifestações de algumas das piores facetas das personagens e representam, desta forma, os seus desejos mais obscuros, ambições, obsessões ou ódios.
Os enquadramentos acompanham a dinâmica dos décors, sendo que os movimentos de câmara são, frequentemente, inesperados e acompanham a encenação com ritmo e vigor. Os planos desvendam o trabalho de cenografia e enfatizam, com frequência, o estado de espírito das personagens. Estas práticas de fotografia deram origem ao chamado “dutch angle”, um posicionamento de câmara com um ângulo irregularmente inclinado que provoca uma sensação desconcertante no espectador.
O aparato expressionista é particularmente marcante pela sua estética propositadamente artificial, é esse artificialismo estilizado que lhe confere o carácter expressivo.
A montagem prioriza as emoções das personagens e a contemplação dos cenários. As sequências permitem uma observação flexível dos décors distorcidos, da encenação e performance dos atores. O ritmo da ação dramática é ornado com quietude e ponderação para permitir uma examinação atenta de toda a mise en scène.
As personagens procuram obsessivamente atingir um determinado objetivo e, para tal, desafiam as normas e estão dispostos a quebrar quaisquer regras ou convenções. Não obstante, encontram-se perpetuamente condenadas à frustração de não conseguirem cumprir com os seus desígnios.
O expressionismo alemão é frequentemente associado à célebre película de Robert Wiene, O Consultório do Doutor Caligari. Lançado em 1920, o filme conta a estória de Dr. Calgari, um charlatão que hipnotiza um homem sonâmbulo, Cesare, para o obrigar a cometer uma série de assassinatos. A obra tornou-se um verdadeiro exemplar do movimento expressionista pela complexa ambiguidade filosófica do enredo e pela ordem subjetiva que pontua o final do filme.
Após o sucesso de O Consultório do Doutor Calgari, Wiene mantém-se no espectro expressionista com filmes como Genuine – O Conto de Um Vampiro (1920), Crime e Castigo (1923), baseado no célebre romance de Dostoiévski e, ainda, As Mãos de Orlac (1924).
Em 1927, o mítico realizador Fritz Lang apresenta Metropolis, uma adaptação da obra literária homónima da autora, atriz e sua esposa, Thea von Harbou. O filme é considerado um pioneiro da ficção científica e uma das obras cinematográficas mais dispendiosas feitas durante o Terceiro Reich. Por muito irónico que possa parecer, o filme decorre, precisamente, num futuro distópico, no qual a sociedade se encontra oprimida pelas máquinas e pela indústria.
Influenciado pela estética gótica, futurista e pela escola Bauhaus, Metropolis é uma obra-prima do cinema mudo com proporções absolutamente faraónicas onde imperam grandes prédios de betão, estruturas colossais e uma febre industrial que faria os parafusos saltar de Álvaro de Campos.
Metropolis é, até hoje, uma grande referência no cinema mainstream. Desde as suas temáticas e personagens ao seu estilo e cenárias, esta obra do casal alemão constituiu um dos marcos mais importantes na história do cinema e é, atualmente, considerada uma das obras cinematográficas mais influentes de sempre.
Lang era um dos cineastas preferidos de Adolf Hitler e foi, inclusivamente, convidado para ser um dos principais realizadores do regime. Após rejeitar, escapou para os EUA, onde começou a deixar a deixar a sua marca no cinema de Hollywood.
A chegada a Hollywood
O cinema do expressionismo alemão chega a “Hollywoodland” (como, na altura, enunciava o famoso letreiro) na forma de film noir. Este subgénero do thriller policial, célebre pelas suas temáticas de romance, crime e suspense, marcou o cinema norte-americano durante as décadas de 1930 a 1950. Com a chegada de Lang e realizadores como Billy Wilder ou Robert Siodmak, igualmente fugidos da guerra, o cinema norte-americano começou a reconfigurar-se e a adotar muitas das componentes técnico-formais do expressionismo, embora numa prática não tão evidente.
No film noir, embora as estruturas do cenário não se encontram distorcidas e a perceção da realidade não seja visivelmente alterada, a componente subjetiva mantém-se através das sombras das fachadas dos prédios, ambientes obscuros e conflitos filosóficos tendencialmente niilistas das personagens.
Algumas das películas mais célebres do film noir, fortemente inspiradas pelo movimento alemão, foram A Sede do Mal (1958), de Orson Welles, Pagos a Dobrar (1944), de Billy Wilder e, ainda, O Falcão de Malta (1941), de John Huston, baseado no romance de Dashiell Hammett.
No entanto, o film noir do séc XX. não foi o único subgénero influenciado pela corrente germânica. No paradigma atual, podemos destacar o realizador Tim Burton como um dos percussores do neoexpressionismo, através de obras como Sweeney Todd: O Terrível Barbeiro de Fleet Street (2007), Eduardo Mãos de Tesoura (1990), O Estranho Mundo de Jack (1993) ou mesmo Batman Begins (1992), em que Gotham constitui um autêntico holograma de Metropolis.
No Reino Unido, os policiais de Alfred Hitchcock foram igualmente inspirados pelo movimento expressionista. O mestre suspense colaborou, inclusivamente, com a UFA na película The Blackguard (1925). Em Berlim, Hitchcock foi assistente de realização e aprendeu diretamente com Murnau.
Atualmente
Em tempos pautados pelo conflito militar na Ucrânia e pelo rescaldo da pandemia COVID-19, pudemos assistir a um revivalismo das técnicas expressionistas na sétima arte. Autores como Robert Egger, Joel Cohen ou Matt Reeves procuram reencontrar o espírito do expressionismo alemão para voltar a tingir o grande ecrã prateado de tonalidades enegrecidas e cenários disformes, repletos de perspetivas distorcidas e insólitas.
À semelhança de Tim Burton, também Matt Reeves procurou inspiração na estética do expressionismo alemão para a sua versão de “The Batman” (2022). Na mais recente obra de Reeves, as sombras, as silhuetas e a paisagem obscura são um sintoma da cidade e uma exteriorização do psicológico das personagens. O rebordo granulado da tela conjuga-se harmoniosamente com a profundidade de campo, maioritariamente, superficial que, ainda assim, permite uma apreciação da cidade de Gotham, ampliada pelas magnificências das lentes Arri Alfa Anamorphic. As lâmpadas de vapor de sódio, pulsantes no background, fornecem um contraste elegante entre as tonalidades quentes do décor e as expressões gélidas das personagens. As silhuetas e a imensidão das sombras conquistam os cantos da tela e tons azulados contrastam com pontos de luz quentes, suspensos na obscuridade como miragens luminosas num deserto de penumbra urbana.
No filme The Tragedy of Mcbeth (2021), adaptação da peça Macbeth de William Shakespeare, o realizador Joel Cohen recorre, igualmente, à inspiração do movimento expressionista alemão. A proporção de tela corresponde a um academy ratio de 1.37:1 que, quando conjugado com a atmosfera obscura a preto-e-branco, cria uma verdadeira experiência noir, reminiscente do trabalho de autores como Lang, Murnau ou Carl Theodor Dreyer.
Os cenários são notoriamente artificiais, as linhas condutoras disformes, as texturas estilizadas e os contrastes altamente definidos, a arquitetura é inquietantemente singela e compacta, como o espaço cénico do teatro.
As performances dos atores são, igualmente, teátricas. O protagonista, Macbeth, vive obcecado, de verso em verso, com as suas ambições políticas enquanto é constantemente perseguido pela angústia do seu passado. A reprodução da prosódia do canto shakespeariano envolve a audiência numa experiência cénica singular. Não obstante, o carácter das artes performativas não abala, em qualquer instância, o conteúdo e a forma cinematográfica, pelo contrário, apenas parece enaltecê-la.
Um dos realizadores contemporâneos que mais recorre à coerência visual do movimento expressionista alemão é, a meu entender, Robert Eggers (The Witch, 2015; The Lighthouse, 2019; The Northman, 2022).
Eggers demonstra uma destreza singular no que concerne à atmosfera do filme. Através de uma atenção meticulosa ao detalhe, o realizador consegue enquadrar as personagens num período histórico coerente, enquanto enfatiza, concomitantemente, os elementos folclóricos e sobrenaturais de lendas e mitos. Os seus protagonistas procuram, incessantemente, atingir um determinado desígnio e libertar-se das suas obsessões, como é o caso de Thomas Howard (Robert Pattinson), em The Lighthouse ou Amleth (Alexander Skarsgård), em The Northman.
Em The Lighthouse, a dupla de faroleiros encontra-se enclausurada numa ilha remota onde o clima constitui uma das principais forças do antagonismo. O jovem protagonista ambiciona libertar-se das ordens do seu superior, Thomas Wake (William Dafoe), um déspota lunático que força a fazer tarefas degradantes e exaustivas. A cabin fever faz-se sentir a partir da atmosfera claustrofóbica e da temática sobre a possante opressão da masculinidade tóxica. O aspect ratio de 1. 19:1 confina as personagens a um espaço tão ínfimo que o design de produção teve que adaptar muitos dos elementos do décor à escala da tela. É, ainda, possível observar influências do movimento Kammerspiel, contemporâneo do expressionismo alemão e conhecido pelas suas propriedades estéticas realistas, escasso recurso a diálogos e altamente influenciado pelo “teatro de câmara”.
A sua atenção aos pormenores é meticulosa, uma ética laboral semelhante à de F.W. Murnau, realizador do clássico Nosferatu (1922), uma obra-prima do expressionismo que explora a primeira adaptação do romance Drácula, de Bram Stoker. O realizador alemão era conhecido pelas suas extensas pesquisas e preocupações obsessivas com o detalhe, assim como por recorrer, frequentemente, a um grande número de especialistas, algo que Eggers confessa ser uma das suas práticas mais frequentes, nomeadamente no que concerne a cenários, design de produção, falas e dialetos arcaicos.
Ainda que o típico mote “a arte imita a vida” possa parecer um lugar-comum, o desassossego das paisagens do expressionismo alemão parece ter voltado para assombrar os novos ecrãs. Com cada vez mais imagens a chegarem do conflito bélico na Ucrânia e dois anos após o primeiro caso de Sars Cov-2, os novos autores e realizadores de ficção começam, cada vez mais, a reedificar os princípios daquilo a que podemos chamar “um perpétuo movimento”.