As novas rainhas da democracia EUropeia

por Diogo Senra Rodeiro,    18 Julho, 2019
As novas rainhas da democracia EUropeia
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Não é um acaso chamar-lhes rainhas. Certamente já não são iluminadas como tantos déspotas que lhes precederam – ou talvez sejam ainda mais, quem saberá! – mas o poder que obtiveram veio de algum lugar divino – digo isto apenas porque não lhes foi atribuído por nenhum dos comuns dos mortais pertencentes à União Europeia.

O processo que há dois dias acabou de consagrar Ursula von der Leyen no seu novo posto ao nível europeu, é um ritual que se sucede no momento pós-eleições europeias e que todos os cidadãos se habituar já a observar, sem nunca questionar a sua natureza.

Nem eu, nem o leitor deste artigo votou para a ascensão ao topo da cadeia burocrática europeia quer de Christine Lagarde, nova presidenta do Banco Central Europeu (BCE) quer de Ursula von der Leyen, nova presidenta da Comissão Europeia (a posição que ocupou Durão Barroso faz uns anos). A primeira, foi nomeada pelo Conselho Europeu, órgão que congrega os chefes de estado de cada país europeu e onde qualquer decisão necessita de 2/3 de votos dos Estados-Membro (EM). A segunda, foi igualmente nomeada pelo mesmo organismo embora tivesse ainda de passar pelo voto de aprovação do parlamento mais ineficaz alguma vez criado, o Parlamento Europeu, voto esse que foi deliberado ontem.

A negociação que envolveu a decisão das mesmas, em adição a de outros dois cargos que mencionarei abaixo, dentro da sala dos (estes sim) democraticamente eleitos Primeiros-Ministros ou Presidentes da República, diz-se ter sido aguerrida. E para percebermos a relevância das pessoas que têm de vir ocupar principalmente estes dois cargos, basta revelar que o período de convénio para o resultar destas decisões tomou mais tempo que a decisão de aprovar uma segunda linha de crédito para a Grécia, aquando do impasse grego, sendo este último assunto para a tecnocracia bruxeleana um de fácil resolução comparando com a demora na decisão para as novas posições.

Assim sendo, a francesa é a primeira pessoa a ocupar o cargo sem ter qualquer tipo de experiência num banco central; o seu background é em direito e nada tem que ver com economia ou finanças – foi, no entanto, Ministra das finanças em França; e sim é a primeira mulher a ocupar o cargo. Face ao primeiro ponto, a senhora Merkel respondeu com a naturalidade de quem manda na Europa e pode dizer o que pensa, tendo afirmado que a liderança mostrada no FMI durante o período de 8 anos enquanto a francesa lá esteve é a prova de que ela conseguirá desempenhar esta nova tarefa; acrescentou apenas que “há uma primeira vez para tudo”. Eloquente.

A alemã, a agora primeira cidadã do seu país de sempre a assumir a presidência da Comissão desde 1967 sucederá a um ex-Primeiro Ministro luxemburguês fã de evasão fiscal, de paraísos fiscais (é também na capital do Luxemburgo onde se encontra o Banco Europeu de Investimento, apenas um aparte) e de perder o equilíbrio devido a “forças invisíveis” durante cimeiras internacionais; enquanto a última nota possa ser borderline ad hominem, embora não deixe de ser verdade, as outras duas referem-se a práticas ilegais, ou se não ilegais são não-legais uma vez que justiça raramente segue a herança da justeza, sobretudo na geografia da EUropa. Resta acrescentar que a alemã é o único membro do executivo de Merkel a acompanhá-la durante os 13 anos de mandato, a sua saída marcando assim a demonstração de poder alemão dentro da organização europeia, que neste momento de interregnum socio-politico-económico vivido na Europa decide nada mais do que demonstrá-lo de facto.

Sem querer menosprezar o futuro papel da senhora von der Leyen, que se mostrou bastante surpreendida aquando do anúncio dos votos (o Parlamento está em forma de anfiteatro, contudo…), não posso acrescentar mais quer por falta de conhecimento, quer por falta de interesse no eventual Exército Europeu que poderá vir a ser por si – ou por Merkel, desculpem – proposto no futuro e que uma vez mais tem o fervoroso apoio do presidente francês, desta feita o fan boy número um da UE, Emmanuel Macron. (O ex-banqueiro esqueceu que o Euro foi inicialmente uma proposta francesa e até agora houve apenas e só uma nação que beneficiou do mesmo – a Alemanha; ao mesmo tempo desconheço a dimensão das forças militares alemãs, mas o seu complexo industrial-militar é deveras conhecido, pelo que poderemos estar em face de mais um mau cálculo chauvinista no contexto europeu).

Se a União se irá consubstanciar uma vez mais naquilo que não é de todo necessário vis-à-vis a realidade real do continente, uma União Militar ou União de Defesa se preferirem, não sabemos; embora esta nomeação garanta uma vez mais que o partido de centro-direita – Europe’s People Party – se mantenha com uma das posições cimeiras dentro da tecnocracia europeia. Ao mesmo tempo que a extrema-direita cavalga por onde tem cavalgado, acompanhada pela erosão do centro (direita ou esquerda) que não-apresenta-alternativas-que-beneficiem-todos-os-Estados-Membros, este é um excelente sinal de mudança vindo da “teia de tecnocracia” (Lure of Technocracy, Jurgen Habermas) que é a União Europeia…

A rainha da Austeridade

Oito anos à frente do Fundo Monetário Internacional, nem candidata principal para o novo cargo era, julgavam os media. Qualificação suficiente, pensa Merkel e concordaram – forçosamente ou não – os outros líderes europeus. Querendo pôr de lado, por um momento, a eventual hegemonia alemã no seio da EUropa, o facto de existirem países que não a Alemanha a crer que o cargo está em boas mãos trata-se de uma misologia pandémica ao nível politico-ideológico no Ocidente, que vai contra não só os resultados aplicados na solução dos problemas que os PIIGS – aquilo a que o mesmo FMI chamou a “Portugal, Italy, Ireland, Greece and Spain” – tiveram de enfrentar e ainda estão a enfrentar; bem como a doutrina económica, que em nenhuma altura da história (do pensamento económico, bem como da aplicação real) acreditou que gerando mais dívida se consegue resolver a dívida que já se tem – o Tratado de Versalhes é o último exemplo ocidental moderno do pensamento deste género, embora sem nenhuma base teórica que o justificasse.

Lagarde foi uma das cabecilhas da Troika, a par do BCE instituição que irá presidir agora, e a Comissão Europeia. Christine conseguiu algo que a sua congénere búlgara, que tem o mesmo nome embora em búlgaro – Kristalina Georgieva – quis fazer aquando da corrida para o Secretariado-Geral da ONU, tendo-se inclusivamente demitido de Chefe do Banco Mundial só porque queria mudar de ares e ir de Washington para Nova Iorque! Agora Christine a francesa, muda de “equipa” mas mantém a camisola e vem para mais perto de sua casa em Paris, Frankfurt. Também teve a sensatez de não se despedir antes, embora soubesse com toda a certeza que iria ocupar o cargo. Georgieva voltou a ocupar o cargo, portanto também nada de novo no mundo da Arquitetura Financeira Mundial.

Para bem da verdade, a sua ausência de experiência num banco central pouco diz quanto à necessidade de qualificações específicas nesta área. (Dijsselbloem também presidiu o Eurogrupo com um título académico falso, mas voltemos ao que importa.) Não só os criadores da União Económica e Monetária (UEM) e de Maastricht, como os presidentes do BCE que curiosamente tinham formação em millieus análogos, conseguiram perceber a natureza podre do que criaram bem como emergência da crise de 2007-09 nos EUA e em especial no nosso continente, a partir de 2011. O exemplo que nos é mais querido é o de Vítor Constâncio, que pelo seu papel desempenhado na supervisão (e supervisão apenas!) durante os anos de folia economicó-financeira do início do século até à explosão da crise, foi depois premiado para coadjuvar o italiano Mario Draghi como Vice-Presidente do Banco Central Europeu, tendo saído há pouco tempo dessa posição. Experiência ou não-experiência, nem sequer há questão.

A Europa que a ex-diretora do FMI irá encontrar economicamente é uma Europa que cresce 0,4% ao ano, num panorama onde até as exportações alemãs – Alemanha é o exportador mais bem-sucedido a nível mundial per capita, superando a China – estão a ser afetadas. Um BCE que desde 2011 não encontrou nenhuma solução para a crise senão baixar as taxas de juro, que se encontram a níveis quase negativos ou mesmo até abaixo de zero, o que representa níveis de investimento baixos ou quase inexistentes.

Ao mesmo tempo que, numa manifestação clara de “pensamento zero” chama-lhe Saramago, desde o mesmo período, advogou apenas e só Quantitative Easing – medida de aquisição de títulos da dívida pública dos governos soberanos pertencentes à UEM pelo BCE, com uma consequente introdução de liquidez (vulgo novo dinheiro) nos bancos centrais de cada país que por sua vez recolocam em circulação este novo dinheiro através dos bancos comerciais do país, aos quais adquirem os ativos – sendo basicamente “novo dinheiro” que o BCE “injetou” através da compra indireta dos ativos do bancos comerciais (ex: Santander Totta, Novo Banco, etc). Por isso é que países que não registavam níveis de dívida pública numa era pré-Euro ficaram com grandes dívidas no início da implementação do Euro sim, mas pior depois de 2011, porque foram os Estados, que são os únicos recetores legais de dinheiro (currency) do BCE, tiveram de vender dívida pública ao BCE para obter liquidez para consequentemente comprar os ativos que não valiam nada dos bancos comerciais (cf. Banco Espírito Santo). Esta é a única solução devido ao mandato particular, para dizer o mínimo, do próprio Banco a par da UEM. Aquilo que Paul de Grauwe, professor da LSE chamaria de “desing failure of the Eurozone”.

O caso mais flagrante da falência deste regime verifica-se em Itália, onde o mercado de títulos de dívida italiana assinala os 3 triliões de dólares, onde todos esses títulos se encontram? Nos bancos nacionais, nos bancos comerciais que operam todo o sistema financeiro da península Itálica. Caso o sistema registe algum “stress”, que sinais é que isto poderá dar ao resto do sistema financeiro europeu? O BCE está a ficar sem munições no que toca a soluções estruturais quanto ao panorama da geografia financeira que constitui e supervisiona.

Que feminismo é este?

Donald Tusk, no seu sempre imaculado inglês, demonstrou-se excitado pelo rácio entre mulheres e homens – dois homens e duas mulheres, aquando do anúncio de quem seriam os nomeados. Numa demonstração de conhecimento de um paradigma que poucos conhecem ou se atrevem a conceber – a vida europeia pré-UE – o polaco, inadvertidamente aposto, socorreu-se da mitologia grega para justificar a escolha, “afinal, a Europa é ela-mesmo uma mulher.”, fazendo referência à mitologia helénica.

Mas na verdade, que perfil é que têm estas mulheres para podermos acreditar que este factor tem algo de diferente de uma governação masculina? Thatcher, Merkel, Mogherini, May, – ou o “fracasso” Hillary Clinton – não podem influenciar a agenda como gostaríamos que fosse ou melhor, como idealmente deveria ser.

No fundo podemos observar este fenómeno pela ótica proposta por David Harvey, de uma filosofia feminista neoliberal do empreendedor de si-mesmo (entrepreneur of the Self). Já não se trata, se alguma vez se tratou, de uma inclusão igualitária do sexo feminino na arena política (o mesmo se passa na económica, aquando da introdução da mulher no mercado laboral). Mas mais difícil de esmiuçar, é se as mulheres que ocupam estes cargos têm a noção deste mesmo factor, quando ao mesmo tempo apenas enviam sinais errados a milhares de mulheres que forçadamente vêm a acreditar que a meritocracia é afinal um valor a ter em conta e que trabalhar é a única atividade que, nos tempos hipermodernos, também as tornam mulheres. Para ambos os sexos, a exploração de si-mesmo, não é bio ou psicologicamente saudável (cf. Psychopolitics, Byung-Chul Han).

A própria natureza dos géneros não pode deixar-se ser afetada pela esfera política, afetando desta forma a psique, sobretudo o género feminino, com isto não dizendo que as mesmas são biológica, mas sim socio-economicamente mais vulneráveis, em resultado do sistema em que vivem. Por isso é que quando se fala do Neoliberalismo, muitos autores (Maurizio Lazzarato, David Harvey, Byung-Chul Han) referem-se ao sujeito neoliberal, pela natureza auto-destruidora que o sistema tem na sua infinita reprodução de tudo o que não tem valor, mas apenas e só preço, rejeitando totalmente a dimensão social que é a condição sine qua non de qualquer sociedade. É afinal a nossa condição aquela a que Marx se referiu quando disse que o indivíduo só se realiza quando em sociedade. Ser livre significa etimologicamente “estar entre amigos” e a empatia é uma das dimensões que podem fazer face a este novo ser dos tempos hipermodernos, esta que é a face neoliberal do capitalismo.   

Por isso os exemplos do género feminino acima referidos ocupam os cargos que ocupam sem terem consciência de qual o impacto transformador que o mesmo poderia exercer para tantos admiradores/as que têm.

Conclusão

As políticas económicas vindas de Frankfurt ameaçam-nos que não serão em nada diferentes às do passado. O cargo foi agora até ter com uma cidadã compatriota do último presidente antes do italiano Mario Draghi que está agora de saída, sucedendo-se assim a Jean-Claude Trichet, vendo-se uma exacerbada influência dos países da Europa ocidental dentro dos mecanismos existentes. O presidente do Conselho Europeu é um belga liberal que ocupava o cargo de PM belga e o novo chefe do Serviço de Política Externa europeu é o ministro dos negócios estrangeiros espanhóis.

A “democracia” (qual democracia?) capitalista da União Europeia continua a comprar tempo apenas injetando dinheiro, num adiamento que não augura nada de bom, sobretudo porque não traz nenhum solução diferente. Os níveis de dívida pública dos países em crise em 2011, a par de outras economias da eurozona, aumenta de dia para dia. A Grécia voltou a optar por uma alternativa política que já falhou sendo essa decisão uma estupidez, avisou-nos Einstein.

No final do dia, os sinais de ocupação por Lagarde do novo cargo, manifestaram-se no único lugar da geografia financeira que importa – os mercados financeiros, que reagiram positivamente em todas as bolsas europeias. A aristocracia financeira sabe que o mercado de circulação de capitais continuará livre para irem de países com muito capital para países com pouco capital, devido à natureza assimétrica entre o centro e periferia que a União regista, perpetuando os deficientes sistemas economico-financeiros dos PIIGS, ou mesmo de outros países menos poderosos.

A circulação de pessoas continua a ser o ponto mais contencioso das 4 liberdades de Maastricht – bens, serviços, pessoas e capital. Mas só se não contarmos com o que gosto de chamar “mobilidade EasyJet” ou “mobilidade Ryanair” que apenas alguns cidadãos podem efetivamente comprar e que dá a todos a sensação de que podem aspirar a algo (um algo profundamente imaterial e inócuo), então a questão dos refugiados ou até mesmo a degradação do mercado laboral ou facto de existirem 16,5% jovens europeus sem trabalho, sem estarem a estudar ou sem estarem a estagiar se revestem de relevância. Veremos o que o novo executivo da tecnocracia europeia é capaz.

Podemos então pensar afinal que somos todos livres dentro da EUropa. Sem nunca esquecer que todas as liberdades são iguais, não fosse o facto de algumas liberdades serem mais iguais que outras.

“Importa dizer que a União Europeia (UE) não existe ao nível político, apenas ao nível financeiro. Aliás, a função da UE tem sido, e continua a ser, a de obrigar as pessoas a trabalhar mais em troca de salários cada vez mais baixos. Estamos a falar num empobrecimento sistemático. Mas o desenvolvimento tecnológico, em si mesmo, não é uma coisa má, pelo contrário. O problema está na forma como o capitalismo organiza as possibilidades tecnológicas de maneira a cairmos numa armadilha.”

Franco Berardi, entrevista ao Jornal Económico

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