As palavras
No filme “As Palavras”, o “Velho” (personagem interpretada por Jeremy Irons) encontra finalmente Rory Jansen (Bradley Cooper), um jovem escritor que se tornou famoso à conta de um livro que publicou com um manuscrito produzido (e perdido) pelo primeiro. Na cena, um diálogo situado entre bancos de jardim, o Velho pergunta a Jansen o que está a ler:
— “Pergunte ao Pó” de John Fante — responde Jansen.
— Como o encontrou? Nunca ninguém o lê — diz o Velho.
— Já leu Fante?
— Se li? Eu conheci-o.
— Conheceu John Fante? — pergunta Jansen.
— Conheci-o em Los Angeles. Deve ter sido em 1958. Ele devia ser alguém que toda a gente conhece — diz o Velho.
— Sim. O que aconteceu?
O Velho responde com uma evidência resignada:
— A Vida.
Não é despicienda a escolha de livro e autor para esta cena: o livro conta a história do aspirante a escritor Bandini, espécie de alter ego de Fante — o romancista americano hoje relativamente desconhecido, mas outrora ídolo de Bukowski.
Foi “a vida” que fez esquecer Fante, nas palavras da personagem do filme, mas também é esta entidade subjetiva porém dominadora que impede amiúde outros “jovens literatos” de se tornarem conhecidos. Nem mesmo no seu bairro. A expressão tem costas largas o suficiente para fazer sombra a outras palavras como timidez, insegurança, comedimento ou, sobretudo, à mais angustiante inaptidão.
O filme estreou em 2012, mas não é dele que quero falar.
Mais ou menos na altura em que esta película foi lançada, um jovem futebolista natural de Loures chegou ao plantel do Sport Lisboa e Benfica. André Almeida, esse sim bastante conhecido, é para mim um caso de estudo. Não sendo um prodígio de talento, nem de perto nem de longe, está há uma década ao serviço das águias. Coexistiu no mesmo onze com grandes craques como Aimar, Saviola, Gaitán, Garay, Luisão, João Félix ou Jonas.
E podia recordar vários outros exemplos, até com menos habilidade do que Almeida. Lembro-me que King jogou na mesma equipa de João Vieira Pinto, Pesaresi com Simão Sabrosa, Paulo Almeida com Fabrizio Miccoli, Jorge Soares fez dupla com Carlos Gamarra, Carlos Bossio substituiu Michel Preud’Homme, etc, etc. — podia estar aqui o dia todo, acreditem. E isto só no meu clube. Meu e de Eusébio. (Para quem não perceber nada de futebol, estão acima enumerados jogadores menos bons que jogaram com outros muito bons).
E este fenómeno, em que alguém menos dotado consegue manter-se no meio dos talentosos, mesmo que temporariamente, podemos porventura justificar por ausência da tal timidez, insegurança ou comedimento. A que se adiciona eventual resiliência, capacidade mental para lidar com o fracasso, entre muitas outras coisas. Mas também ele, o fenómeno, podemos associar à resposta do Velho sobre Fante.
“A vida” pode levar-nos a aceitar as nossas limitações e continuar a jogar ou a escrever apenas no próprio quintal, sabendo que nunca seremos como os craques. Mas também pode levar-nos a jogar ao seu lado.
Teremos sempre duas opções: recuar perante a perícia de Lobo Antunes ou Clarice, os contextos de Atwood ou Saramago, a ironia de Eça ou Agustina, a novidade de Calvino ou Faulkner, o humor de Esteves Cardoso ou Saunders, a erudição de Borges ou M. Tavares; ou avançar apesar deles, chutando a bola para o pinhal com a convicção de um tecnicamente subdotado Jorge Soares que descansa o genial colega Carlos Gamarra: “esta não vai sobrar para ti, Carlitos”.
E aqui estou a cada jornada, na Comunidade Cultura e Arte, com o equipamento oficial e caneleiras novas, caneta na mão à procura de assunto para crónicas, apesar de Ricardo Araújo Pereira (RAP), de Rubem Braga, de Assis Pacheco. Eu, que teria sido um razoável defesa central, se o débito de piadas parvas aos companheiros contasse como golos e pedir calma aos adversários contasse como desarmes, cá continuarei a escrever envidando esforços para fintar a timidez, driblando a insegurança, fazendo carga de ombro ao comedimento, e tentando evitar as faltas, de talento.
Sabendo que hoje em dia na literatura tudo pode acontecer, não há jogos de palavras fáceis, que os hendecassílabos são onze contra onze, que é iminente o risco de ser admoestado por palavras, e que o uso constante de trocadilhos idiotas aproxima-me tanto da expulsão como de ser considerado nada mais do que o próximo Freitas Lobo Antunes.
Sabendo também que King, João Vieira Pinto, Eça, Fante, André Almeida, García Márquez, cada um daqueles palermas que abusam de name-dropping para se armarem em espertos e eu, um dia, estaremos todos ao mesmo nível: esquecidos.
É a vida.
Mais vale ir a jogo.
Deixa comigo, RAP, esta crónica faço eu.