As pessoas são estranhas
É possível que o mundo precise de ser salvo. É pouco provável que isso venha a acontecer. Ou mesmo que seja desejável. E enquanto os grandes desígnios da Humanidade não se cumprem, observemos o que para aqui nos interessa: os seus pequenos desígnios, iguais e da mesma forma espantosos.
O amador da natureza humana tem uma vantagem sobre os restantes indivíduos: há sempre qualquer coisa passível de deter o seu olhar, por mais irrelevante ou marginal que possa parecer. Normalmente são factos disfarçados de trivialidade, reservados para rodapés ou comentários ociosos que facilmente se esquecem.
Mas, caro leitor, estes pequenos afluentes humanos que correm ao lado do grande rio da História não deixam de ser reais. Como esta notícia recente, por exemplo: um cientista russo, Serguei Savitsky, esfaqueou o colega com quem se encontrava em serviço numa remota estação científica na Antárctida. Até aqui nada de novo – altercações violentas acontecem um pouco por todo o lado. Mas o motivo não: a vítima não parava de contar ao agressor os finais dos livros que o outro estava a ler. Pausa para o leitor sorrir, como eu fiz. Só que este pequeníssimo alfinete no Grande Esquema Das Coisas pode ter mais do que se lhe diga (para além de Savitsky ter ficado com a honra duvidosa de ser o primeiro homem condenado por esfaqueamento na Antárctida). É que a coisa já tem antecedentes. E com elementos comuns.
Explico: em Setembro de 2013 dois homens discutiam acaloradamente as obras de Immanuel Kant. Subitamente um deles, provavelmente por um qualquer imperativo categórico, disparou várias balas de borracha sobre o interlocutor, acabando assim o debate. Eram ambos russos. Mas continuem comigo: quatro meses depois do incidente que relatei, outro esfaqueamento. Desta vez a discussão era outra mas o tema também era relevante: o que é superior, a prosa ou a poesia? Um ex-professor resolveu colocar o argumento definitivo sobre esta matéria em forma de arma branca; a vítima, um homem de 67 anos, não resistiu aos ferimentos. Aconteceu no sul de Sverdlovsk que fica – adivinhastes – na Rússia.
Que conclusões poderemos tirar daqui, leitor? Pessoalmente acho qualquer tipo de violência inaceitável; mas poderei dizer que não compreendo estes homens? Ou estes acontecimentos confirmam as teorias de que existe uma identidade colectiva (e nestes casos em particular a famosa Alma Russa)? Ou mais prosaicamente que o vodka pode prejudicar qualquer discussão literária?
Não sei responder. Como de costume vou buscar santuário ao que já foi escrito (e tudo já foi escrito) para tentar compreender as coisas, E encontro-me com esta famosa locução de Publius Terentius Afer (194 a.C ? – 159 a.C), um autor romano de várias sátiras e comédias: “Homo sum, humani nihil a me alienum puto”, ou seja “Sou homem; nada de humano me é estranho”. Uma atitude distanciada e quase blasé sobre aquilo que somos e fazemos. Mas felizmente, e por mais banal que isso possa parecer ainda é possível maravilhar e estranhar. E quem sabe, isso sim poderá salvar qualquer coisa, por mais pequena que seja. O mundo, nunca se sabe.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.