As várias facetas do arquiteto Álvaro Siza desenhadas pela sua própria mão em exposição na Gulbenkian
O sentido de humor, a permanente necessidade de desenhar, o gosto pela dança e pela música são facetas do arquiteto Álvaro Siza que se destacam na exposição “Siza”, a inaugurar na sexta-feira na Fundação Gulbenkian, em Lisboa.
A mostra está dividida em duas partes, uma “muito material, sobre a arquitetura de Siza Vieira”, na galeria principal da sede da Fundação Calouste Gulbenkian, e outra dedicada à sua “obra plástica”, na galeria de exposições temporárias do Museu Gulbenkian, explicou o arquiteto, crítico e curador da exposição, Carlos Quintáns Eiras, numa visita guiada à imprensa.
Grande apreciador da obra do arquiteto português, o curador galego destacou que o nome de Álvaro Siza “é conhecido à escala planetária” e tem “uma dimensão e magnitude que por vezes em Portugal se esquece e ignora”.
Por isso, se sentiu impelido a fazer esta “grande exposição”, a primeira nos últimos 30 anos em Lisboa, embora condicionado pela necessidade e preocupação de “fazer algo que ainda não foi feito”.
A primeira grande dificuldade prendeu-se com “a capacidade de trabalho extraordinariamente importante” de Álvaro Siza Vieira.
“Na História [da arquitetura] não há produção similar”, afirmou, indicando que tirou partido da colaboração com várias instituições, para obter “uma imagem total do Siza”.
Assim, a exposição resulta do cruzamento do material de arquivo existente no Canadian Centre for Architecture, em Montreal, no Canadá, na Fundação de Serralves e na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, no centro britânico Drawing Matters e do atelier do próprio arquiteto.
O curador, que iniciou o trabalho há um ano, em parceria com a arquiteta Zaida García-Requejo, curadora assistente, revelou que se viu confrontado com mais de meio milhão de documentos.
“Como é óbvio, não pudemos trabalhar com todos. Calculamos que trabalhámos com cerca de 250 mil documentos”, contou.
A primeira parte da exposição – intitulada “Arquitetura” – é um “atlas” de Siza, uma mostra que pretende ser abrangente, com uma análise da sua obra através de 30 verbos (conceitos), para cada um dos quais são apresentadas (em plantas reproduzidas numa mesa comprida) três obras arquitetónicas, num total de 90.
Estes números são significativos, pois há uma harmonia numérica na forma como a exposição está montada: todas as peças e expositores são agrupados em múltiplos de três.
Numa pequena sala escura, são projetadas 900 imagens fotográficas, feitas pelo fotógrafo espanhol Juan Rodriguez, que começou a trabalhar com Siza Vieira nos últimos 40 anos.
Este “filme” tem a duração total de 15 minutos (900 segundos) e projeta, a cada tês segundos, três imagens em simultâneo (uma na parede em frente do espectador) e duas nas paredes laterais.
Nesta primeira galeria estão também expostos os “cadernos de capa preta” (em fac-simile) com desenhos e esquissos do arquiteto, cadernos que – nas palavras do curador – “contêm a inércia do Siza”.
“Através dos seus cadernos, [Siza Vieira] mostra uma forma de pensar”, afirmou Carlos Quintáns Eiras, acrescentando que “o desenho, para o Siza, é conquistar de alguma forma o futuro”.
Nessa medida, explica o curador, para o arquiteto é importante pensar a construção dos edifícios, desenhando “absolutamente tudo”, razão por que há um núcleo da exposição destinado apenas a mobiliário desenhado por Álvaro Siza: cadeiras, bancos, poltronas, móveis, mesas e candeeiros.
É nesta altura que Carlos Quintáns Eiras mostra que as pernas de uma mesa rodam, de forma a ficarem com os vértices para fora, desalinhados do tampo da mesa, uma “brincadeira” do arquiteto, que induz as pessoas a pensar que estão tortas e a endireitá-las.
Este é um dos muitos sinais do sentido de humor de Siza encontrados no seu trabalho e que desmentem o ar sisudo que normalmente apresenta, comentou, acrescentando que outros exemplos deste “humor fino” (no sentido de humor britânico) estão patentes por todo o lado, como nos cadernos (escolares) que têm inscrita na entrada a palavra “disciplina”.
Nesses cadernos, Siza Vieira escreve, junto à palavra “disciplina”, no lugar de colocar o nome da disciplina lecionada, “nenhuma”, “pouca”, “sem” ou o prefixo ‘in’, contou.
Nesta sala, encontra-se ainda uma seleção de livros e publicações, dedicadas ao arquiteto e à sua obra.
A segunda parte da exposição – intitulada “Arquiteto” – revela o universo mais pessoal e íntimo de Siza Vieira, a começar por um conjunto de aguarelas feitas pelo arquiteto e por um autorretrato, o maior que existe: quatro por quatro centímetros.
O que se observa nesta sala é que Siza está sempre a desenhar e revelam-se plenamente as suas maiores referências das artes plásticas, que são Amadeo de Souza-Cardoso, Matisse e, principalmente, Picasso, de quem o arquiteto absorve algum estilo.
“Para o Siza, Picasso é muito importante. Na arquitetura fez o mesmo que na arte, que deve entender-se através do cubismo. Podemos ter um Siza que tem a ver com diversas correntes, como o impressionismo ou o expressionismo, mas mais importante é a ligação absoluta com o cubismo”.
Toda uma parede desta sala é ocupada com ampliações de folhas dos cadernos em que desenha, com autorretratos sobretudo das mãos, mas também alguns dos pés.
Outro núcleo está afeto aos desenhos que Siza fez da família e de amigos, e a um expositor que guarda “cadernos extensíveis”, nos quais são contadas em desenho histórias da mitologia.
Os curadores quiseram transportar para a exposição essa ideia de que Siza Vieira desenha sempre e em todo o lado, apresentando, pois, exemplares de desenhos feitos em pedaços de papel rasgados, em toalhas de mesa, em folhas de papel com manchas de café.
“Há uma folha desenhada, que está queimada por causa do tabaco e com manchas de café. Não está nesta exposição, mas é a expressão mais perfeita do trabalho de Siza”, contou.
Como o arquiteto desenha constantemente, também desenha a ver televisão, principalmente programas de música jazz ou clássica (os seus géneros musicais de eleição), ou de ballet, expressão artística que para Siza Vieira é “tão importante como a arquitetura”, assegurou o curador.
Por isso, há todo um núcleo de desenhos de bailarinas, que ocupa uma parte central da sala, expostos em pequenos quadros individuais sobre tripés, num conjunto de 60 desenhos.
Siza desenhou também uma orquestra e cada um dos seus elementos encontra-se num pequeno papel colado num maço de cigarros, dispostos dentro de um expositor de vidro, num total de 39. A ideia desta composição é a de mostrar que “Siza desenha tão rápido como fuma”.
Outro tema em destaque é o das viagens, apresentado numa seleção de 60 desenhos que Álvaro Siza fez em contexto de viagem, não só no tema retratado, mas também no suporte usado, como, por exemplo, sacos de avião, papéis com o logótipo da companhia aérea ou programas de exposições.
Nesta sala estão igualmente expostas obras de sua mulher, a artista Maria Antónia Siza (1940-1973), e algumas esculturas.
O curador lamentou que “falte o cheiro” associado ao Siza – café, tabaco, madeira – nesta exposição, mas acredita que as peças expostas induzem esse aroma.
Para o curador, Álvaro Siza Vieira – que não estará na inauguração, mas garantiu que vai ver a exposição – é um “arquiteto capaz de transformar o país, um arquiteto capaz de imaginar um futuro melhor, um arquiteto que é visto de fora como um dos melhores do mundo”.
A exposição vai ser acompanhada de um programa público, que inclui visitas orientadas, oficinas de desenho, uma mesa-redonda, com duas sessões, para “Pensar Siza Vieira”, e um ciclo composto por três filmes, escolhidos pelo próprio Siza: “O Arquiteto e a cidade velha”, de Catarina Alves Costa, “Vizinhos”, de Cândida Pinto, e “A Dama de Chandor”, de Catarina Mourão.
Nascido em 1933, em Matosinhos, distrito do Porto, Álvaro Siza Vieira foi o primeiro português a vencer o Prémio Pritzker, o maior galardão de arquitetura do mundo, e o único arquiteto não espanhol a ser distinguido com o premio de arquitetura de Espanha, salientou o curador.