Até que o aborto nos separe
A identidade da autora foi ocultada por opção da própria e a Comunidade Cultura e Arte aceitou proteger a identidade da mesma.
Esta não é uma história de vitimização. Não pretende inspirar simpatia ou pena (embora gostasse de encorajar empatia, já que foi a falta desta que lhe deu origem). Esta é uma história propositada e esforçadamente fria, de factos e de atitudes que não deviam existir mas que, acredito e espero eu, são de repetição evitável.
Esta narrativa ter de permanecer anónima só substancia a sua necessidade. Se me perguntassem, há dois meses, se teria medo de admitir uma interrupção voluntária da gravidez (IVG), diria prontamente que não. Hoje respondo, com igual prontidão, que sim. Muito.
Não tenho uma (boa) desculpa para ter engravidado sem o desejar. Tenho 31 anos, sou informada e esclarecida. Na verdade, pela natureza da minha profissão (médica), estou habilitada a providenciar aconselhamento sobre planeamento familiar — coisa que faço com frequência, e bem. Por outro lado, e precisamente por possuir esse conhecimento, posso garantir que, no universo das probabilidades, o que aconteceu foi bastante inesperado — aquilo a que, noutros termos, podemos chamar “azar”. Mas não era impossível: e eu sabia disso. Não fui violada, ninguém me escondeu a pílula, não “tomei nenhum antibiótico” — nada. Não há desculpa. Fui descuidada.
Também não tenho uma “desculpa” para não ter querido prosseguir — novamente, tenho 31 anos e um emprego; sou auto-suficiente, globalmente saudável e capaz de providenciar cuidados; quero, efectivamente, ser mãe um dia. Tenho, no entanto, motivos para não o ter querido agora: os principais dos quais o facto de saber que não estava, de todo, com a pessoa certa para isso; o de não querer estar sozinha nisso; e o de, mentalmente falando, não me sentir ainda preparada para isso. Este último motivo, bem sei, pode ser relativo.
Aqui estou eu, no entanto, a falar de desculpas, quando, na verdade, a lei diz que não preciso de uma. Aqui estou eu com um discurso de culpa quando, na minha moral pessoal, não desaprovo de todo o que fiz, nem ninguém que o faça ou tenha feito. Então, porque é que sinto que houve, em todo este processo, um esforço tão grande, da parte de tantos outros seres — humanos como eu —, para que me sinta culpada? É que, por inferência retroactiva, dir-se-ia que em Portugal não é preciso uma desculpa.
Aparentemente, não é bem assim. Onde estão, afinal, esses portugueses: os que, como eu, votaram “Sim” à despenalização do aborto no dia 11 de Fevereiro de 2007? Bem, neste texto perceberão, pelo menos pela minha experiência, onde não estão — e que o aprendi da pior forma.
***
É domingo. São dez e pouco da manhã. Estou sozinha em casa, com o meu gato doente e com um teste de gravidez positivo na mão. Não fui comprá-lo à farmácia — encomendei-o por um serviço de entregas, porque já nessa altura me sentia muito exausta, sem energia até para as tarefas mais simples (o motivo que, na verdade, junto com um atraso de muito poucos dias, me levou a fazer o teste). Não pedi ao meu namorado, que acabou de sair para o seu emprego precário, que mo comprasse: não pedi porque ainda não tinha decidido se queria que ele soubesse o resultado. Da mesma maneira que não pedi que me acompanhasse em nada neste processo, porque sabia que ele não me faria bem — da mesma maneira, no fundo, que não queria ter um filho com ele.
É então domingo de manhã, e a minha cabeça é um misto de surpresa com a minha própria estupidez e pânico acerca do que fazer a seguir: há anos que não trabalho no Sistema Nacional de Saúde (SNS), não faço ideia do actual circuito para IVG. Acabo por optar por aquilo que a minha geração aprendeu a fazer intuitivamente em quase qualquer situação: vou ao Google. Encontro vários sites, de associações portuguesas reais e legítimas, que me garantem que o SNS24 saberá como me encaminhar para uma consulta prévia de IVG. Permito-me — ingenuamente — ficar um pouco mais tranquila, e ligo para o infame 808 24 24 24 (um número que, penso em retrospectiva, eu própria já dissera a tantos utentes para marcar, com a mesma segurança com que este sites mo haviam dito a mim — será que a experiência deles foi como a minha? É uma questão que coloco a mim mesma).
Não tardo a ser atendida. A voz que me atende — como praticamente todas as vozes que me atenderão ao longo deste processo — é feminina, factor que rapidamente virei a perceber não ter um valor preditivo positivo relativamente à empatia que posso esperar. O tom neutro, profissional, torna-se muito rapidamente seco e evasivo quando menciono a sigla maldita, “IVG”. Não é com ela, diz. Porque liguei para ela? Porque seleccionei aquela opção? Ela é só administrativa, continua. Não é profissional de saúde, não tem nada a ver com isto. Então com quem devo falar?, questiono. Não ouvi na lista nenhuma opção mais apropriada. Com a Saúde Pública, claro, é-me respondido, no tom de alguém que realmente não quer que eu fale mais. E não quer mesmo: dispõe-se automaticamente a encaminhar a chamada, o que lhe agradeço.
A mulher que me atende desta vez é enfermeira, segundo a própria. Não é administrativa, pelo que, nas palavras da colega anterior, assumo que “tenha mais a ver com isto”. Mas parece que não. A maneira como fala é a de quem trabalha em serviço ao cliente num call center — o que, no fundo, suponho que se aplique, excepto que os clientes dela devem, em geral, estar em situações anímicas complicadas. Eu sei que estou. De qualquer maneira, diz-me que o circuito da IVG é como sempre foi — tenho de ir ao meu centro de saúde, marcar consulta, ser encaminhada para o hospital. O meu centro de saúde de inscrição fica a muitos quilómetros, explico, sabendo de antemão que ela não tem nada a ver com isso, mas apelando na mesma a um eventual esclarecimento sobre alternativas. Então tente saber o hospital da sua área de residência actual e dirija-se lá, responde-me. OK. Até aí, tudo bem. Como posso obter essa informação?, pergunto. Vivo nesta zona há muito pouco tempo, não faço ideia. Eu posso encaminhá-la de volta aos serviços administrativos para que a esclareçam, garante-me. Agradeço novamente.
De volta ao primeiro departamento, apenas com uma voz feminina diferente: em timbre, não em tom. Oiça, eu aqui só consigo marcar-lhe consulta no seu centro de saúde, num espaço de cinco dias. Mas não é nada específico de IVG, é só uma consulta médica, entende? É o que pretende? (Por esta altura, sinto-me muito confusa). Não, explico, e repito o que me foi dito pela senhora enfermeira. A Saúde Pública não deve ter percebido bem, diz-me a auto-proclamada administrativa quando eu termino. Vou encaminhá-la de novo, até porque se tem urgência neste assunto não é por aqui que deve resolvê-lo.
Certo.
De volta à enfermeira, que esta sim, é a mesma. Julgo detectar um suspiro — não de preocupação, não de empatia; apenas de cansaço, de “porque é que eu tenho de falar com gente assim”. Minha senhora, diz-me, agora definitivamente agressiva, quando foi a sua última menstruação? Respondo-lhe. (Se é relevante para esta fase do processo, porque não me perguntou antes? Guardo a questão para mim.) Olhe, isto como sabe tem prazos legais, está bem, isto não é para o SNS24, portanto, vá directamente a uma urgência à maternidade mais próxima de si, sabe qual é? Por acaso sei, porque é realmente muito próxima, dá para ir a pé: a famosa Maternidade Alfredo da Costa (MAC). Pronto, então vá lá, tão simples quanto isso, OK, esclarecida? Então boa sorte com tudo, bom dia. Desliga.
Depois disto, dou subitamente conta de que, algures a meio desta conversa, tinha começado a chorar — um choro completamente involuntário, fluido, mas silencioso, de que nem me tinha apercebido e que não é, de todo, típico de mim. Sinto-me estupidamente fragilizada e fragilmente estúpida. Ironicamente ou não, sinto uma saudade terrível da minha mãe, que vive muito longe já há quase quinze anos.
De volta ao Google — incrível como tanto neste processo serão voltas de 360º — para procurar o número da MAC. Atende-me o único homem com quem viria a lidar telefonicamente, e que suponho, pela natureza do acto, que fosse recepcionista. Explico-lhe a situação: pretendo uma consulta de IVG, liguei para o SNS24, foi-me dito que poderia ir simplesmente à urgência da maternidade mais próxima, neste caso é a MAC, posso simplesmente aparecer? O senhor pede-me um segundo e logo regressa, dizendo que sim, posso simplesmente comparecer, não na urgência mas na consulta externa, em qualquer dia útil entre as 8h e as 16h, e solicitar consulta de IVG. Mesmo sem marcação?, certifico-me. Mesmo sem marcação, é-me confirmado. Perfeito. Segunda vez que fico mais sossegada sem um bom motivo para isso: check.
***
O namorado chega a casa. Digo-lhe que temos de falar. Explico-lhe tudo o que sinto que está errado na nossa relação: a maneira como me faz sentir que não posso ser eu própria, a pressão e insegurança que coloca em mim diariamente, a atenção quase nula que me dedica. Surpresa ou não, ele não discorda: vai até mais longe e diz-me que duvida que vá mudar; que, para ele, ele está efectivamente sempre em primeiro lugar; que não vemos o “amor” da mesma maneira; que talvez o melhor seja, realmente, ir cada um para seu lado — tudo isto ipsis verbis. Choro um pouco, mas, apesar de tudo, estou calma. Depois desta conversa mostro-lhe o teste.
Felicidade. Felicidade absurda, irresponsável (como ele é), inconsequente (como nós fomos), ilógica (como toda a nossa relação). Como podes ficar assim, após tudo o que falámos?, pergunto. Que importa?, diz-me ele, e sinto-me novamente muito confusa. Que importa isso tudo? O que importa na vida é isto, o resto é secundário, nós resolvemos, oh god, os meus pais vão ficar tão felizes. Não contes a ninguém, digo-lhe — é simultaneamente um pedido (que ele não viria a cumprir) e uma advertência; não contes a ninguém, porque eu não sei o que vou fazer. Como assim?, responde-me, ele sim, chocado. Como não sabes o que vais fazer? Volto a listar todos os motivos por que tudo isto é uma má ideia: ele faz-me sentir mal na minha pele; há cinco minutos, a nossa relação estava prestes a terminar, com o acordo dele; filhos não salvam más relações, antes pelo contrário, más relações corrompem filhos, esse é o verdadeiro crime.
O clima muda, ele fica sério. Faz o que quiseres, diz-me. Faz o que quiseres, não te vou julgar, mas sinceramente, se não quiseres um filho meu, não sei se te quero a ti (ipsis verbis, sempre ipsis verbis). Pergunto-lhe, porque é que tinha de ser agora; porque é que me rejeitava tão completamente apenas por não querer ter o filho dele agora, quando era óbvio que agora tudo estava mal, que ele era egoísta demais até na nossa relação, que não nos conhecíamos assim tão bem, que ele próprio não tinha a vida mais estável — de todas as maneiras — para ter um filho; porque é que não podíamos esperar. Não sei, foi a resposta dele. E completou: é o que sinto agora, e não consigo prever o que vou sentir se o fizeres, se fizeres um aborto. Acho que não te vou querer, disse ele.
E pronto.
No ar, no silêncio, fica a pairar o “acho”: a dúvida e o egoísmo incondicional de sempre, imune à fragilidade alheia — à fragilidade de quem dizia “amar” —, imune a tudo, asfixiante, duro.
***
No dia seguinte, às oito em ponto, quero estar na MAC. Quero tratar disto o mais rápido possível. Quero aprender com esta lição e seguir em frente. Tenho medo. Medo de como vou ser tratada. Não vou falar com os meus pais, não têm saúde para que os importune com os meus problemas, e de qualquer forma estão longe, o que poderiam fazer? Não vou sequer tentar mais o namorado — ele não quer saber de mim, não realmente, e já o deixou bem claro. Falo então com o meu melhor amigo — masculino, sim — de há mais de dez anos. (Se esta situação serviu de alguma coisa, foi para separar as águas entre quem interessa ter e quem não.) Conto-lhe tudo.
No dia seguinte, às oito em ponto, estamos os dois à porta da MAC.
O recepcionista/segurança dá-me as direcções para o secretariado da consulta de IVG. É legítimo, então; posso, realmente, simplesmente aparecer. Dirijo-me a esse balcão. O cenário: um corredor vazio, eu, com uma repartição envidraçada e, do outro lado, uma administrativa que, sem qualquer pudor, se limita a continuar uma conversa de teor pessoal com uma auxiliar durante uns bons dois minutos, antes de se dignar atender-me. Quando o faz, não é, claramente, para me ajudar.
— Diga.
— Bom dia, vinha para a consulta de IVG?
— Tem marcação?
— Não… disseram-me que bastava aparecer.
— [Ri-se. É um riso sarcástico, quase malicioso.] Carta do centro de saúde?
— Não tenho, como lhe disse.
— É preciso carta do centro de saúde.
— O meu centro de saúde fica muito longe daqui, foi-me dito pelo SNS24 que devia vir aqui.
— [Ri-se novamente.] Ui, esses dizem muitas coisas que não são verdade. Não. Precisa de carta de lá.
— Apesar de a minha área de residência ser esta?
— Está inscrita no centro de saúde desta área?
— Como lhe disse, não.
— Então inscreva-se e traga-me uma prova disso. [O tom é de desafio.] Depois logo se vê.
— …É assim? Não posso fazer nada?
— Pode fazer o que lhe disse. Bom dia.
Parece satisfeita. A conversa comigo durou, definitivamente, menos do que o excerto a que assisti da que tinha tido com a colega. Ocorre-me que devia fazer uma reclamação pela maneira como fui tratada. Mas não, não tenho cabeça para isso. Vou para casa como um cão com a cauda entre as pernas, sem me reconhecer.
***
Nesta fase, estou a começar a ficar francamente aflita. Já sou ansiosa por natureza: nada disto ajuda. Faço uma passagem mental rápida pela lista de pessoas que conheço com quem penso poder contar “para um assunto destes”. Tenho uma amiga especialista em Ginecologia/Obstetrícia — o nosso pensamento político sempre foi alinhado. Talvez ela? Falo com ela. Surpreendentemente, é uma conversa árdua: e calor, nenhum. Et tu, Brutus? Não posso dizer que não me tentou ajudar — mas posso dizer que deu para perceber que não estamos, afinal, tão alinhadas assim.
No fim, tendo trabalhado no centro de saúde em que ainda estou inscrita e possuindo ainda lá alguns contactos médicos — pessoas que preferia não envolver neste assunto —, acabo por falar com um deles, com quem sempre me dera bem. Foi a pessoa que mais bem me tratou neste processo todo. (É um homem. Coincidência? Tristemente, acho que não.) Numa questão de horas, esta pessoa informou-se sobre o procedimento actual para IVG e passou-me a carta para o hospital de referência com os dados que lhe forneci, mesmo sem a minha presença física.
Tive sorte. A minha profissão privilegiou-me.
Não devia. Não devia ter precisado disso.
Com a ajuda sempre incondicional — como o amor devia ser — do meu amigo, faço a viagem até ao centro de saúde de inscrição e levanto a carta. Vou levá-la ao hospital de referência. Ironicamente, sendo o serviço de Obstetrícia deste hospital objector de consciência para IVG, é precisamente nesse secretariado que encontro a primeira mulher que me trata bem desde que isto começou. Deve ter a minha idade, talvez um pouco menos. Fica com os meus dados, dá-me um termo de responsabilidade para assinar e explica que todas as IVG são referenciadas para uma clínica privada, pelo que devo aguardar o contacto deles no prazo de cinco dias úteis. Nessa tarde consigo, finalmente, dormir uma ou duas horas.
***
Os dias passam e nenhum telefonema. Trabalhar com este cansaço, e com a náusea que se começa a sentir, é desgastante; mais desgastante ainda o facto de a isso se juntarem ansiedade e insónia intensas. Não faz mal: fisicamente, sou resistente; é a minha cabeça que não está a saber lidar. Sei que ainda estou dentro do prazo, mas a paranóia acumula: e se tenho mais semanas do que penso? Ao terceiro dia ligo para a clínica dez vezes, literalmente — não sou atendida, sequer. Deixo voice mail, mando e-mail — ambas as vias a que prometem responder — nada. Ao quarto dia, consigo ser atendida. Agendam-me para a segunda-feira seguinte. Tê-lo-iam feito dentro do tempo, se eu não os tivesse contactado? Não sei. Assumo que sim. Não tenho, apesar de tudo, motivos para pensar que não.
Compareço na clínica sem medo: se este é um sítio onde se fazem tantas IVG, qual é a pior coisa que pode acontecer, certo? Bom, pode acontecer a administrativa tratar-nos de forma tão seca e condescendente como as dos outros sítios, como foi o caso. Depois de me repreender como a uma criança por ter guardado o cartão de cidadão “antes de ela me ter mandado fazê-lo”, lá me indica a sala de espera, onde fico obedientemente a aguardar, lendo o panfleto fornecido sobre o procedimento — e acreditando que, certamente, o trato a partir dali será diferente.
Para não variar, estava enganada. O processo de “consulta prévia” da clínica é uma linha de montagem, neste momento (apenas pela COVID, espero?) completamente exposta. Vou primeiro a um gabinete precário, cuja porta aberta deixa o meu corpo semi-nu exposto a todas as mulheres que aguardam no corredor, para execução de uma ecografia de datação — que sei, por formação, dever ser realizada por via vaginal, mas que me é feita de forma suprapúbica, o que me deixa desconfiada da informação dela proveniente — e “escolha de um método”. A clínica só está a realizar o método cirúrgico, porque implica menos vindas à clínica, dizem-me. COVID, acrescentam, ficando só mesmo a faltar o encolher de ombros. Quer anestesia geral ou local? Sem pausa: ainda estou deitada na marquesa enquanto tenho esta conversa, ainda me estão a olhar de cima, ainda estou imóvel e exposta. Digo que prefiro local — não preciso dos efeitos de mais uma anestesia geral na minha vida, já tive várias. OK, está grávida de 6 semanas, anestesia local então, por nós tudo bem mas tem de ficar bem quietinha, ouviu?, na altura não se pode mexer, pronto, agora vista-se, aí não que está desinfectado!, isso, aí, assine o termo, já assinou o termo?, OK, aguarde lá fora, adeus. Total? Menos de cinco minutos. O que vou aguardar? Não faço ideia. Não está no panfleto e ninguém me explicou, nem tive uma aberta para perguntar.
São análises. Só sei disto porque aparece no mostrador que chama pelas senhas: “Análises Clínicas”. Entro no gabinete indicado, onde me é feita uma colheita de sangue venoso sem uma única palavra. Por mim tudo bem — também não me apetece falar. Aguarde lá fora, é tudo o que me é dito. No fim, claro.
A última paragem é com uma mais uma pessoa que não se identifica, e cuja classe profissional, portanto, desconheço. Sei que não é médica porque, quando lhe digo que eu sou (a pergunta é-me feita — pede-me não só a minha profissão como a do meu namorado, suponho que para efeitos estatísticos), diz-me que “devo saber mais do assunto do que ela”. Explico que não, não sei assim tanto acerca deste assunto, já que nunca estive grávida, nem falei com ninguém que tenha passado pelo processo de IVG em Portugal. Não tenho, ainda assim, muito a apontar a esta pessoa: tratou-me bem, explicou-me o básico. Perguntou-me se tinha dúvidas, e eu esclareci as que tinha (ou pensei que tinha esclarecido). Indicou-me a data e hora do procedimento, que não tive qualquer hipótese de escolher e que seria já dali a três dias, e deu-me um novo panfleto, do qual constavam os contactos da clínica, no caso de surgirem novas dúvidas entretanto. Não sei se o teria utilizado — acredito que não —, mas de apoio psicológico ninguém me falou.
***
Surgiram, efectivamente, novas dúvidas, quando o meu cérebro recomeçou a pensar e me apercebi de que ia fazer um aborto cirúrgico com muito poucas semanas de gravidez (altura em que a eficácia deste método é menor), e que não me tinha sido dado qualquer fármaco de dilatação do colo do útero para toma prévia ao procedimento, ao contrário do que, após leitura do material da Direcção-Geral da Saúde sobre este assunto, pensava ser norma. Tendo escolhido anestesia local, e contando já com a experiência prévia de biópsias muito dolorosas do colo uterino, o medo do descontrolo pela dor — mais provável sem este fármaco — começou a instalar-se. Depois de muita luta comigo própria sobre se estaria simplesmente a ser picuinhas, mas tendo acabado por decidir que tinha direito, pelo menos, ao esclarecimento, liguei para o contacto de telemóvel fornecido no último panfleto que me tinham dado. Directo para voice mail. Tentei, então, o número geral da clínica — a única alternativa disponível. Desta vez foram dezassete tentativas, não dez: mas, eventualmente, atenderam-me. Não sei se esta foi a mesma pessoa que me recebera presencialmente da primeira vez — pela voz, não parecia, mas pela agressividade podia muito bem ser. De qualquer maneira, sei que o que ouvi foi quase inacreditável, como aquelas histórias que tantas vezes assumimos que estão a ser exageradas: só que não.
— Bom dia.
— Bom dia. Desculpe estar a incomodar, mas vou fazer o procedimento amanhã e disseram-me que devia ligar se tivesse dúvidas. Posso falar com alguém do corpo clínico? Ninguém atende do telemóvel.
— Oiça, a esta hora não tenho aqui ninguém da parte médica. Qual é a sua dúvida afinal?
— São duas, mas não sei se me poderá esclarecer.
— Diga simplesmente, se faz favor.
— Uma delas é relativa à eficácia do procedimento, como estou com muito poucas semanas.
— Oiça, as mulheres vêm aqui por algum motivo, certo? E não saem daqui grávidas.
— Compreendeu ou não?
— Certo.
— Qual é a segunda dúvida?
— Tem a ver com ter lido que devia tomar um medicamento antes deste tipo de procedimento.
— Algum médico aqui lhe disse para tomar alguma coisa?
— Não, precisamente por isso.
— Então obviamente não vai tomar nada.
— …OK.
— Esclarecida?
— Sem dúvida. Obrigada.
“As mulheres não saem daqui grávidas.” Como quem fala com alguém que vai tirar dentes.
***
A clínica tem um sistema de senhas interessante: “A” para consulta prévia, ou seja, tudo o que eu já tinha feito, e “B” para intervenção. Naquele dia, fui o B19. Esperei algum tempo — sozinha, como tinha de ser. Enquanto esperava, pensei nas pessoas incondicionais da minha vida; na minha mãe, no meu pai e até no meu gato que tinha sido operado nessa semana. E percebi que as “coisas” incondicionais não eram muitas.
Costuma dizer-se que nem tudo pode ser mau: não é sempre verdade, mas, felizmente, neste caso foi. As pessoas que trabalham no bloco operatório desta clínica — auxiliares, enfermeiras, médicos — parecem completamente desconectadas das dos restantes departamentos, como se não se conhecessem uns aos outros sequer. São carinhosas, prestáveis. Olham-nos nos olhos, tratam-nos pelo nome. Seguram-nos a mão e dizem que vai ficar tudo bem. Como uma mãe. Como uma coisa incondicional. E nesse dia, efectivamente, ficou tudo bem — comigo e com todos os outros “B”s com que me cruzei. (PS: Sempre havia o tal fármaco: sublingual, meia hora antes do procedimento. Faz sentido.)
Escrevo este artigo três semanas após a intervenção. Tive apenas os efeitos secundários esperados: algum sangramento, alguma dor; alguns sintomas residuais de gravidez, pela hormona que ainda circula em mim. Tive, uma única vez, de recorrer ao número de atendimento permanente que nos é dado na alta (este sim, específico do corpo clínico), por um episódio de dor mais forte do que o esperado ao fim de algum tempo. Eram onze da noite, e mesmo assim fui imediatamente tranquilizada e esclarecida. Por pessoas como esta e as que me atenderam no dia da intervenção, não faço reclamação da clínica. Pelas que se cruzaram comigo até esse dia, podia fazer.
Se existissem livros de reclamações para pessoas, ou se a maldade fosse crime, também podia fazer queixa do meu actual ex-namorado, que decidiu cortar completamente o contacto comigo de um dia para o outro, dois ou três dias após a intervenção, quando os sintomas ainda eram fortes e eu não conseguia fazer quaisquer tipos de esforços, deixando-me sozinha em casa, a mãos comigo própria e com um gato ainda doente — apesar de antes me ter prometido que, “numa relação comigo ou não, estaria ali para me apoiar a 100% no que eu precisasse naquela fase”. Esteve a 0% (ou menos, a cair no negativo, se tivermos em conta o peso emocional que acrescentou a tudo isto) — o que, tendo como referência o passado, não me surpreendeu. Coisas condicionais. Valeram-me as outras, as poucas incondicionais — as que este processo me ajudou a identificar.
***
Esta não é uma história de vitimização. Não pretende inspirar simpatia ou pena. Fui descuidada, sofri as consequências disso; fiz a minha escolha, sofri as consequências dela. Hoje, globalmente, estou bem — o que é mais do que muitos podem dizer. Recordo-me com frequência de algo que a anestesista do bloco (natural do Leste Europeu — é interessante notar que nenhum dos médicos que conheci naquela clínica era português) me disse, já na sala de operações: “felizmente, hoje em dia isto é possível”. Recordo-me das histórias de terror que já ouvi, tantas vezes, de pacientes minhas que quase morreram de hemorragia ou infecção em mesas clandestinas, antes de, em 2007, termos votado para que isso não mais acontecesse. Se relativizarmos a situação, de facto, tive sorte. Tenho sorte.
Mas não devemos relativizar tudo. Não nos devemos “contentar”. Não sou mártir, nem tenho personalidade para isso — mas sou humana, e em demasiados pontos deste processo senti-me tratada como menos do que isso. Porquê? Num país de tradição judaico-cristã, consigo compreender que alguns sejam “contra o aborto” — para a maioria das pessoas religiosas, as questões desta natureza tornam-se, automaticamente, extremamente pessoais e dogmáticas, mesmo quando não as envolvem directamente (afinal, trata-se de um julgamento final). Na população masculina em geral — assumindo ausência de justificação pelo credo —, que nunca terá de passar por uma gravidez, desejada ou não, não consigo compreender, mas talvez até aceite mais facilmente, que alguns sejam contra o aborto: precisamente pelo condicionamento dessa ignorância biológica, fora do seu controlo. Numa clínica de infertilidade, atendendo ao viés de selecção, é aceitável, e quase de esperar, que os funcionários não tenham todos a melhor opinião acerca do aborto voluntário. Mas, curiosamente, as pessoas que mais mal me fizeram, ou fizeram sentir, foram quase todas elas mulheres, e quase todas elas da esfera dos serviços de saúde — inclusive, de serviços de saúde orientados para o aborto. Porquê? Porquê tanto ódio, porquê tanto desprezo — mais do que isso, e sendo todos (as) nós humanos (as), como tanto ódio, como tanto desprezo?
E o que é, afinal, ser “contra o aborto”? Posso ser contra o meu próprio aborto — posso não querer abortar. Posso achar imoral a noção de aborto, por motivos religiosos ou não. Mas ser “contra” o acto em si, quando escolhido e praticado por outrém de cuja vida não sei nada, com quem não tenho nada a ver, com cujas causas e consequências não tive nem terei, respectivamente, de lidar? O que é isso? De onde vem? E desumanizar, tentar forçar culpa — de onde vem e para quê? Para que aprendamos, para que não “pequemos” de novo? Posso garantir, agora por experiência própria, que não é necessário estímulo externo para isso — e posso também garantir, por observação e estudo, que a minúscula percentagem de mulheres que usa a IVG “quase como meio contraceptivo” (compreendo que sou suspeita ao apresentar esta estatística, mas não precisam de acreditar em mim: há múltiplos estudos sobre isso) não vai deixar de o fazer por ser menos bem tratada no processo, e/ou já o fazia quando o procedimento era clandestino. Por cada mulher puramente inconsequente e/ou inconsciente que estão a punir (ou não estão, porque pela própria natureza da sua inconsequência ou falta de consciência, não se sentirão punidas), estão a ferir, muitas vezes grave e irreversivelmente, dezenas a centenas que já o estão a fazer a si próprias.
Fragilizar mulheres que estão já, pela natureza da situação, fragilizadas; diminuir e culpabilizar seres humanos que já se sentem diminuídos e culpados; dar pontapés a corpos caídos. E o mais perverso, no meio de tudo isto, é que o estão a fazer nos circuitos que a lei legitimou, precisamente, para acolher quem toma esta opção.
Opção. Escolha. Direito.