Aterrar em segurança
Sabes que se te virares a extensão do que ficou para trás já é suficientemente vasta para que o horizonte se desvaneça em brumas. Longe vão os alvores da aurora e por diante encadeia-te a direito o ocaso – quando levantará o mocho que voa ao crepúsculo?
Mas é preferível não fazeres como a mulher de Lot, exemplo do que pode suceder a quem olha para trás.
Mesmo de olhos fechados – sobretudo de olhos fechados – percebes que são mais os escombros, as lavras inacabadas, as casas abandonadas, os caminhos que derrocaram ou deram em impasses, do que o edificado capaz de subsistir um pouco para além de ti. Verás também que ao cabo de tanto som e de tanta fúria, e de tão pouca consequência que tiveram, é estreita e marcada de acasos a vereda por onde chegaste até aqui.
Já sabias, contudo, que assim era, ninguém te iludiu ou prometeu outra paisagem, diferente desfecho. Bem avisado foste por tantos dos que te precederam e tiveram a generosidade de contar o que sentiam e verificaram em face daquilo que se lhes deparava – está tudo pintado, cantado, escrito ou filmado.
Mas tal como a memória é um epifenómeno ou uma circunstância do esquecimento, porque se o cérebro não deslembrasse a vida seria impossível, de tão angustiosa e paralisada, também a sabedoria nunca há-de convencer mais do que a experiência e por esta é limitada. Não se sabe verdadeiramente quanto dói um choque eléctrico antes de se enfiar o dedo na ficha, por mais que a metafísica queira converter em “tristeza” e “felicidade” o que é sempre vivido como simples e pequenos desgostos ou alegrias.
Chegaste, portanto, aqui prisioneiro das tuas próprias quimeras, sobretudo daquela que te fez crer ser a marcha sempre para diante, equivocado por todas as pontas soltas que faltam atar (nunca nada se atará), pelo encantamento do que de novo te instiga como alternativa à rota batida em que vinhas posto. E deliberadamente, como todos antes de ti, julgando-te tu tão sagaz, confiaste que não seria igual contigo, que a qualquer hora o recomeço é provável e está ao alcance da mão.
Por outro lado é mesmo para trás que deves olhar.
O teu domínio não está no que virá, mas no que foi, no que à tua volta se foi esquecendo e só tão poucos como tu recordam. Conversas mais com os mortos do que com os vivos, porque é nos mortos que descobres maior sabedoria e novidade.
Nunca foi tão bom como agora – dizem e reconheces – nunca houve tanta escolha e diversidade, nunca tantos se empenharam tanto em tantas coisas. Todavia há um rumor surdo e persistente, a película superficial vai ganhando espessura, o ruído é cada vez mais sólido, a maré traz na frente mais espuma que demora mais a borbulhar sobre as coisas – serão os teus ouvidos ou será isto que declina?
Finalmente percebes. Todos estes clarões que à tua volta deflagram, a imporem-se com a vaidade e a certeza das coisas descobertas, como se fossem causas e tivessem futuro, não passam de meras consequências, fogachos ténues do que no passado já houvera sido imaginado. Não os incomodes nem desiludas; se lograrem atingir o revolto cabo que ora dobras, logo saberão ser normal contarem-se menos os triunfos do que os desaires, e que a repetição prevalece sobre a diferença.
Ao fundo, no fundo, o tédio. Não incomodes, não te atravesses, tenta não seres grotesco. Doravante seguirás na esteira do carro da sorte, visto que já recolhido foi o espólio da tenacidade e do merecimento que eventualmente houve e nada mais tens a receber.
Aperta o cinto de segurança, em breve acender-se-á a luz de aviso e uma voz te informará do tempo e da temperatura lá em baixo. Boa aterragem.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização