“Athena”, de Romain Gavras: entre gregos e troianos
Este artigo pode conter spoilers.
No seu mais recente filme “Athena” (2022), Romain Gavras filma a agitada anatomia de uma comunidade nos subúrbios de Paris. A câmara, sempre célere e em permanente deslocação, guia-nos através de planos-sequência pelas artérias do espaço de habitação social de Athena, onde capta o pulsar crescente e inquieto de uma revolução iminente. O carácter do filme reside na sua forma, já o enredo aposta em temáticas alegóricas que acabam por perder-se entre o caos das revoltas. Em ‘Athena’, Gravas não procurou agradar a gregos e troianos, no sentido em que existe uma evidente, e talvez propositada, imposição dos elementos técnico-formais à história. “Athena” é um filme que prima pela qualidade de captação, mas cujo guião parece servir a linguagem cinematográfica e não o contrário, o que acaba por condenar e enaltecer a película em simultâneo. É absolutamente caótico, muitas vezes no bom sentido.
A história é quase tão arcaica quanto o jardim do Éden. Karim (Sami Slimane) lidera um grande movimento de contestação após a morte do seu irmão, Idir, alegadamente assassinado por grupo de polícias. Abdel (Dali Bensallah), o terceiro irmão, cumpriu o serviço militar no exército francês e está compenetrado em manter-se fiel ao seu sentido de justiça. Do lado da ordem, Abdel tenta travar a revolução que Karim lidera e que está prestes a tornar-se num golpe militar organizado e com o crescente adesão.
O filme abre com aquele que é, seguramente, o melhor plano-sequência deste ano. Após uma conferência de imprensa na qual Abdel apela a uma marcha protesto pacífica, Karim, acompanhado de um grupo de resistentes, inflamam uma revolta violenta. Assaltam o armamento da polícia local, roubam uma carrinha, e começam os preparativos para que se avizinha.
Nesta contenda entre irmãos não existe uma personagem central. O protagonismo é atribuído à ideia de que, entre luto, espírito reivindicativo, rancor à polícia e às instituições, chantagem, política social e ideologia, o sangue derramado nada alcança. Tudo é em vão, mero espetáculo mediático, conteúdo para comentário sem conhecimento de causa e palco de uma perpétua e frenética tragédia.
Seguimos, ainda, um polícia de intervenção no que parece ser o seu primeiro dia de trabalho, um traficante de armas desesperado e um mastermind terrorista. À exceção dos irmãos, quase nenhuma destas personagens parece ter grande profundidade. Existe pouca ênfase na boa gente, comunidade local, que demonstra preocupação e, ao mesmo tempo, desprezo pela juventude inquieta e afirmam ter de travar os acontecimentos, mas apenas afirmam, por aí ficam. A responsabilidade de travar o caos recai sobre Abdel.
A certo momento, os planos-sequência deixam de surpreender, tornam-se um padrão e a tensão dos tumultos desparece para dar lugar à repetição. O filme repete a sua fórmula, dá azo a mais espetáculo, mais fogo, mais fumo, mais ação. Tudo isto ao som de um pujante e épico segmento coral, que exalta a índole trágica do filme.
Em última análise, para uma película que procura a tragédia grega através da amplitude de temáticas bíblicas, deixa a desejar. Captado com enorme destreza técnica, mas com fraco engenho narrativo, “Athena” é uma excelente experiência imersiva e o último ato do que poderia ser uma boa história.
O filme teve a sua estreia na 79.ª edição do Festival de Veneza e encontra-se agora disponível na Netflix.