Atrasados, como na moda

“Os meus pais, como os outros membros da família, diziam-se de esquerda antes de passarem a votar na extrema-direita e na direita”, escreveu Didier Eribon em “Regresso a Reims” (2009), uma semi-autobiografia deste filósofo francês. Neste relato em primeira pessoa, que se cruza com a reflexão sociológica, conta-nos como a sua família de classe trabalhadora — pessoas normais, como diz — votava à esquerda (e até em partidos da esquerda radical), mas que ao longo dos anos 70 e 80 foi progressivamente cooptada pela extrema-direita. Parece que a mesma realidade nos bateu à porta, mas com 50 anos de diferença. Afinal os atrasos não são apenas na moda.
“Uma maioria sociológica não se muda criando as condições para ela se enraizar. Não se muda chamando de ignorantes, burros, iletrados ou de parvos. Muda-se deixando de estar à defesa e mostrando um projecto novo para o país, para a comunidade, para a rua.”
Didier Eribon diz-nos o mesmo que Thomas Piketty e outros estudiosos do confronto eleitoral — a esquerda deixou de conseguir falar para as pessoas que tradicionalmente nela votavam. A esquerda tornou-se, até certo ponto, na sua própria inimiga. Deixou-se levar pelo discurso do mérito, da responsabilidade individual, das contas certas, das boas práticas, perdendo o que a caracterizava: o avanço comum, o alargamento das condições, um Estado de bem-estar inovador e inquieto, a inconformidade com a desigualdade. Em suma, deixou-se levar pela direita, mas, sobretudo, pelo neoliberalismo.

Neste momento, a direita como um todo tem já uma maioria suficiente para mudar a constituição, tem a Presidência da República, as principais câmaras do país, os dois governos regionais. Não é um mero ciclo eleitoral negativo: cimentou-se uma maioria sociológica à direita. E a esquerda, se alienar quem votou à direita, só vai piorar a sua situação. Uma maioria sociológica não se muda criando as condições para ela se enraizar. Não se muda chamando de ignorantes, burros, iletrados ou de parvos. Muda-se deixando de estar à defesa e mostrando um projecto novo para o país, para a comunidade, para a rua. Coisa que a esquerda parece ter esquecido como fazer. Aliás, hoje, a maioria dos projectos sabe às populares bolachas de milho: não têm sabor, enchem por meros instantes e acabam por não satisfazer. Não admira que à primeira oportunidade, com a tentação de qualquer outra comida, se mude. Pelo menos algum sabor terá, ainda que seja o da podridão.
Quem joga à defesa acaba, inevitavelmente, por perder. O nem um passo atrás, táctica de reduto utilizada, resultou num trambolhão. Mais do que estar a evitar recuar, a esquerda tem de aprender a atacar e mostrar que é possível dar passos em frente.

Termos chegado atrasados a este momento não é de todo negativo. Pela Europa e pelo mundo vemos que a tendência é que se a esquerda se torna igual a todos os outros, acaba por desaparecer. Precisa, por isso, de se reinventar. E para tal, tem de ir ao passado. Recordar porque é que Léon Blum venceu as eleições com a Front Populaire. Entender como Olof Palme ganhou as eleições contra o avanço das forças reaccionárias. Perceber como Jorge Sampaio uniu a esquerda para vencer numas eleições perdidas à partida.
Não sendo marxista, nunca Marx esteve tão certo quando disse que os filósofos, durante muito tempo, apenas interpretaram o mundo, mas que a coisa verdadeira importante era como mudá-lo. E quem se esquece de o mudar acaba por perder.