Augusto Gomes, o artista dos mares nortenhos

por Lucas Brandão,    24 Dezembro, 2017
Augusto Gomes, o artista dos mares nortenhos
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Augusto Gomes fez, da tela e dos demais suportes, portais para um mundo figurativo e artístico, muito similar ao da realidade. Um estilo íntimo das comunidades, especialmente das piscatórias e das mais populares, que, com base em Matosinhos e no Porto, proveu vida e eternidade a tempos que começavam a ser fotografados e filmados. Não obstante, a pintura nunca perdeu o seu lugar de destaque no retrato e na descrição pictórica dos pedaços do mundo com os quais privou e que consagrou. Foi assim com Augusto Gomes, nome sobejamente conhecido no que toca à história da pintura portuguesa, que reforçou e perpetuou grande parte de um Norte consistentemente promovido.

Augusto de Oliveira Gomes nasceu na cidade de Matosinhos, no dia 12 de julho de 1910. O seu percurso académico começou no Liceu Rodrigues de Freitas, no Porto, ao qual, em 1927, se seguiu a Escola Superior de Belas Artes do Porto, onde se matriculou no curso preparatório para aprender pintura. No entanto, seria em Lisboa que concluiria esse mesmo, no ano de 1931. Nesta transição de décadas, expôs ao lado do grupo artístico + Além, sediado no Porto. Foi para aqui que voltou quando acabou a sua preparação na capital, concluindo o curso especial e o superior de pintura. Na ESBAP, seria lecionado pelos pintores Acácio Lino, José de Brito, e Joaquim Lopes, finalizando pintura com 19 valores, no ano de 1941.

Apesar de alheio a várias exposições, e de se concentrar em trabalhar de forma introspetiva, não deixou de se envolver na corrente então privilegiada, do ponto de vista plástico, compondo com excelência e rigor. Tematicamente, e privilegiando o fresco, embrenhou-se no folclórico e no rústico, com um especial pendor para retratar a realidade marítima e piscatória, bebendo um pouco daquilo que era o neorrealismo. Neste figurativo, contudo, há uma tendência para a monumentalidade, para valorizar e glorificar as partes envolvidas na criação artística, com laivos renascentistas e impressionistas, naquilo que é a captação da luz e a inspiração em nomes, como Vincent Van Gogh e Paul Cézanne. O geométrico também tem importância no trabalho do artista, naquilo que é a disposição dos vários elementos constituintes de uma obra marcada e subtilizada pelo realismo. A apatia das figuras corresponde à própria mágoa acumulada no quotidiano marinho, flagelado pelas perdas e pelas atrocidades.

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Gente do Mar” e “Família

A este período, seguiu-se o da sua docência, para além de dar volume ao seu trabalho artístico. Assim, entre os anos 30 e 40, lecionou em vários pontos do norte do país, como no Porto, e nas escolas industriais de Viana do Castelo, Bragança e Viseu, e em Lisboa. Porém, colocaria uma pausa no seu percurso como professor, limitando-se à sua carreira de artista. Os anos 50 chegariam, desta feita, com duas viagens de estudo, com uma a contar com Espanha e França, e a segunda com uma ida à Bélgica, para além de participar em exposições declaradamente neorrealistas. Voltaria a dar aulas no ensino universitário, na Escola Superior de Belas Artes do Porto, pouco depois desta viagem, em 1958, onde foi nomeado professor assistente. Seis anos depois, após defender provas de agregação, tornar-se-ia professor em pleno exercício das suas funções, e juntar-se-ia à Junta Nacional da Educação.

Augusto Gomes foi realizando trabalhos religiosos e mitológicos, ainda ligados à escola onde se graduou. No entanto, denotava-se, desde cedo, uma necessidade de ir para além das premissas aprendidas, captando um sentido de inovação muito particular. A sua figuração, especialmente no remate dos anos 30 e início dos 40, tornou-se mais sólida e estável, com uma anatomia, apesar de exagerada e pesada, volumétrica e capaz de transmitir as emoções situacionais dos elementos retratados. A iconografia popular que idealizou tornou-se moldável e adaptável ao retratado e ao visado, embora se despreocupasse com qualquer linha narrativa. Uma crescente redução da cena, povoada por alguns objetos, permitia ao matosinhense potenciar o caráter e a dignidade dos mesmos, num ambiente talhado para a sua expressão. O classicismo formal traz algumas palavras a dizer nesta forma de criar arte, com um recorte a negro feito pelas figuras, nas próprias figuras. O artista empreendeu, assim, uma pintura sintética e económica, com interpretações simplificadas e objetivas, disfarçando a paz numa apatia conceptualmente fechada e hermética.

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Estátua do Homem do Leme, no Porto (1934)

Já nos anos 50, o seu património criativo conheceu amplitude em vários edifícios marcantes e identitários da cidade portuense, sem nunca se desdobrar em associações e em grandes expressões públicas. Entre eles, estão os frescos na capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, os mosaicos na fábrica da Companhia União Fabril Portuense, os painéis no Hotel Batalha e na Livraria Portugália (esta desaparecida), para além de maquetas, cenários e figurinos para o Teatro Experimental do Porto. O construtivo do seu trabalho volta a preencher figura e fundo, abarcando mais ângulos, e desprovendo-se das formas habitualmente suaves que usava. As figuras adquirem um trato mais vigoroso e robusto, e o dramático e o denso tornam-se notas dominantes e proeminentes no seu trabalho. Não obstante, as texturas sentem-se duras e marcantes, com o alicerçar de um dramatismo complementado pelas cores surdas e mudas.

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Tragédia do Mar“, inspirado no naufrágio de 2 de dezembro de 1947, nas águas de Matosinhos

A sua carreira prosseguiria com a participação em algumas exposições, como nas magnas da sua faculdade, e na própria região ultramarina, para além da II Bienal de São Paulo, no Brasil, e em viagens de estudo, que incluíram incursões a Itália e a Inglaterra. Concomitantemente ao exercício de funções de professor, foi bibliotecário e secretário na ESBAP, nos anos 70, cessando a sua carreira no ensino após a revolução de 25 de abril. No ano em que se reformou, fez parte de uma exposição coletiva de artistas do concelho matosinhense, no Orfeão da cidade, para além de, no ano seguinte, constar no Levantamento da Arte do Século XX, no Museu Nacional de Soares dos Reis, museu onde constam várias das suas coleções criativas. Para além deste, também o de Bragança e o de Luanda, na Angola, possuem várias obras da sua autoria, assim como o Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa. O pintor viria a falecer no dia 28 de outubro de 1976, na cidade que o viu nascer, e onde se tornou eternizado, especialmente, por conceder o seu nome a uma escola secundária, um local de ensino, colmatando um imenso legado educacional, especialmente no âmbito artístico.

“Ele pinta lentamente uma luz supliciada,
porque tudo é amor e ama-se lentamente”

Eugénio de Andrade, poeta português, sobre a pintura de Augusto Gomes.

Nesta parte final da sua vida, foi capaz de percecionar uma nova formalidade, robusta e primada por uma semântica correspondente a um sentido de crítica renovado e estimulado. Despejando a passividade com a qual se demarcou nos anos 50, pintou a sua angústia e desencantamento pela realidade pintada, embora sem se deixar devorar pela voracidade robusta de outrora. Assim, os anos 60, muito virados para os grandes painéis murais, são refrescados pelo Quattrocento de Itália, de caraterísticas clássicas e bizantinas, e pela contemporaneidade, principalmente oriunda da América do Sul. A arte social, tal como nos murais sul-americanos, confere um especial sabor e trago a periódicos com os quais colaborou, na própria contestação e discussão da realidade. O espírito, assim, rejuvenesceu, com uma epopeia do quotidiano, valorizando o esforço e o sofrimento das esposas dos pescadores.

Já no que toca aos anos 70, apesar de uma austeridade inerente à realidade vivida, sente-se uma certa aceitação e pacificação daquilo que é a reação e a posição em relação à mesma. O próprio terreno dramático é colocado em tela, e proposto como uma transfiguração da atualidade, dando o mote para uma transformação e uma transmutação do quotidiano nesse terreno cénico. A própria desumanização conhece uma nota de destaque, sintonizada por uma mecanização e uma desertificação das personagens, e um esvaziamento dos cenários apresentados, onde a natureza se dissipa para dar lugar a uma artificialidade crescente e emergente.

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Caçadeira de Cobras” (1966)

Augusto Gomes expressou-se para além dos pincéis, dos lápis, e das telas. Vitrais, cerâmicas, tapeçarias, xilogravuras, mosaicos, cenografias; todas estas fizeram parte de um repertório extenso e amplo, marcante para a história de várias cidades nortenhas. Com forte pendor nortenho, foi vasto o corpo de inspirações que ingeriu para dar lugar a um eu artístico vário e personalizado. Tudo isso foi corroborado pelo repertório que deixou expresso, indo de painéis em igrejas nortenhas, até a esculturas em bronze, como a do Homem do Leme (1934). Subjacente, esteve sempre uma vontade de contar a realidade com o dramatismo que o mar e o ar lhe proporcionaram, em que o seu forte se revelou, desde sempre, o norte.

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