‘Aurora’, dos Sensible Soccers: memórias de um verão português

por Bernardo Crastes,    15 Março, 2019
‘Aurora’, dos Sensible Soccers: memórias de um verão português
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Os Sensible Soccers vieram preencher uma espécie de vazio na música portuguesa contemporânea com um som muito característico. A sua música é povoada de sintetizadores que evocam os tempos analógicos, ritmos decadentes e ecos e espectros da cultura portuguesa, criando uma nostalgia exacerbada pelos crescendos impactantes de muitas das canções da banda. Villa Soledade, o disco anterior, focou-se no “imaginário das estradas nacionais, de um país real e por cumprir, esquecido e alienado”, mas Aurora expande essa visão. A nostalgia é mais demarcada, as influências mais amplas e a música ainda mais desafiante e entusiasmante. É um álbum viciante que não tem receio do seu próprio som, usando-o de forma confiante e sem rodeios.

A banda sempre teve os seus impulsos pop, manifestados nas suas melodias cativantes, mas nunca de forma tão directa como em Aurora. Aqui, temos comprimidos musicais com durações de três e quatro minutos, como é o caso de “Chavitas”“Telas na Areia”. A primeira tem um ritmo bem carregado e a guitarra sempre groovy da banda. Facilmente imaginaríamos alguém a dar voz ao cocktail de teclas, mas em equipa que ganha não se mexe. “Telas na Areia” paira sobre a sua batida synthpop até ao final do disco, adicionando elementos a seu bel-prazer, seja a guitarra a roçar aquela foleirice de bom gosto ou os vários sintetizadores que assumem diferentes personalidades.

No entanto, para quem tiver saudades das progressões características da banda, há sempre o primeiro single lançado, “Elias Katana”. Esta canção em constante mudança tem bongós e xilofones tropicais, um ritmo de samba minimalista e sintetizadores que ecoam pelo fundo, dando a ideia de estar sempre a ir em frente. A meio, entra o baixo mais feroz da banda, rapidamente amenizado por uma flautinha absolutamente deliciosa. Só de a ouvir, apetece logo dançar todas as preocupações para fora de nós. Ou seja, mesmo tendo o crescimento comum às canções dos Sensible Soccers, tem uma visão muito mais direccionada para a pista de dança, algo nem sempre premente na música dos mesmos, até agora. A verdade é que é uma faceta que lhes cai muito bem.

A música dos Sensible Soccers atinge um novo nível de permeabilidade à cultura portuguesa ao utilizar samples de reportagens veranegas de telejornais dos canais generalistas portugueses, o epítome da silly season“Fenómeno de Refracção” dá a ideia de ser uma espécie de interlúdio, mas funciona como mais do que isso. Por detrás das palavras vazias que descrevem uma calamidade que nunca aconteceu, há ruído estático, sintetizadores que parecem cigarras e um jam de guitarra funk descontraído. Quase se consegue ouvir o alcatrão a fervilhar, pelo meio das camadas de som que reflectem um Verão em Portugal.

A banda criou uma personalidade muito distinta do que se faz em Portugal actualmente, não só pela sua música, mas também pela imagética e imaginário (vejam-se os títulos altamente sui generis das canções). No entanto, há espaço para trazer outros elementos para a mistura. Para além das percussões calorosas que populam este Verão optimista dos Sensible Soccers, sentem-se outras influências externas. “Import Export” vai beber à fonte de música ambiente dos Boards of Canada. “Um Casal Amigo” é reminiscente de Oneohtrix Point Never, com as suas teclas meio distorcidas que se dissolvem em ruído branco. Outro dos singles, “Como Quem Pinta” (com um título francamente bonito), começa como uma versão menos cerebral de Floating Points, mas assim que a percussão tipo palmas entra, abre-se uma nova porta para o som da banda. Talvez por isso seja a faixa que nos recebe em Aurora.

Numa altura em que não sabemos se queremos voltar ao passado confortável, mas retrógrado, ou avançar em direcção ao futuro progressista, mas assustador, os Sensible Soccers lançam um disco que nos dá o melhor dos dois mundos. Cristaliza o melhor do passado numa sensibilidade de composição progressiva e experimental, que nos leva sempre para a frente. Se em Março o disco já nos parece tão bem, nem imaginamos como irá soar no pico do Verão, durante aquelas viagens em que o tempo parece não passar, mas que também não queremos que passe.

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