“AYKA” e o cine-olho de Dizga Vertov
Sempre me disseram que se pensar num filme durante uns dias: é porque o filme é bom. Mas se pensar nele mais de um mês: é porque ele é mesmo muito bom, ou, de alguma forma, mexeu comigo. De facto, há filmes que têm este poder sobre mim. Alguns até que na altura, não estava à espera, mas que, depois, não conseguem sair da minha cabeça. «AYKA», de Sergey Dvortsevoy — que assisti na sessão de março do “Ciclo de Cinema Almas Inquietas” que nós, Leiria Film Fest, programamos, todos os primeiros sábados de cada mês, no MIMO – Museu da Imagem em Movimento — é um deles.
O filme conta a história de Ayka, uma jovem quirguistanesa que vive, ilegalmente, em Moscovo e que acaba de dar à luz. Forçada a abandonar o seu bebé no hospital, pois não consegue cuidar dele devido às suas condições precárias de vida, Ayka é uma mulher forte e determinada que luta pela sua sobrevivência numa cidade hostil, sendo, ao mesmo tempo, perseguida por mafiosos. Obrigada a trabalhar em empregos de baixa remuneração e enfrentando o abuso dos seus empregadores, a história de Ayka acaba por trazer a palco várias questões sociais como: a necessidade de políticas mais justas para proteger as mulheres pobres e imigrantes de abusos e exploração; ou a questão do abandono e tráfico de crianças devido à pobreza.
Repleto de questões semióticas que nos forçam a uma constante comparação entre as classes sociais ricas e pobres, «AYKA» é um filme, também ele, que é contado de forma muito real. Não só toda a realidade crua das transformações do corpo de uma mulher que acaba de dar à luz, como também, toda a realidade existente no submundo da emigração ilegal e de todos os que se aproveitam de pessoas já, por si, em situações precárias.
E, assim sendo, torna-se impossível não relacionar esta forma de contar uma história com o cine-olho de Dziga Vertov – movimento que surgiu na Rússia no início do século XX, e que busca retratar a realidade sem adornos, em que a câmara era usada como uma ferramenta de consciencialização social. E, olhando para «AYKA», a sua forma de contar uma história, lenta e acompanhando um sofrimento constante da personagem, sempre de câmara à mão, que nos faz colocar numa posição de estar ali, ao lado daquela mulher e a sofrer com ela — apesar de ficcionada — acaba por nos levar a um lugar de verdade. Sem adornos. Sem fogos de artifício, nem metáforas. Está ali. À nossa frente, obrigando-nos a questionar tudo.
«AYKA» é um filme poderoso e comovente que retrata a luta pela sobrevivência num mundo difícil e desafiador, e que merece muito ser visto. Porque o Cinema também é isto: levar-nos a conhecer e a questionar. E é maravilhoso, não é?
Esta crónica foi originalmente publicada no Jornal de Leiria, tendo sido aqui publicada com a devida autorização.