Bater nos mais fracos
Uma frase que sempre me ficou do filme «Black Narcissus» ocorre no momento em que a velha criada dá ao jovem rajá uma vergasta para ele castigar uma menina que tinha feito qualquer coisa que já esqueci, embora não me tenha esquecido das palavras com que a mulher velha incita o homem a proceder ao espancamento: «show that you’re a man».
O filme passa-se na Índia; mas o sentimento que a velha criada exprime não é indiano, porque é universal. Hoje, nalguns países do mundo ocidental, existe legislação baseada nessa coisa sacrílega chamada Direitos Humanos, que criminaliza alguém que pega numa vergasta, num chicote, num cinto, num varapau para açoitar, surrar outro ser humano. Hoje, as três categorias de gente que historicamente mais sofreram sob os golpes dos açoites – mulheres, crianças, escravos – estão protegidas nas democracias de modelo ocidental.
Uma dessas categorias (escravos) está até banida por lei há mais de cem anos, o que não significa que não continue a existir: ainda no «Guardian» de ontem se falava em escravatura clandestina no Reino Unido de hoje. A diferença é que nós hoje consideramos a escravatura algo de inaceitável, com base nesses sacrílegos Direitos Humanos – sim, porque em vão procuraremos na religião e nas Sagradas Escrituras em que as religiões se baseiam algum apoio para a ideia de que seres humanos não devem ser escravizados.
E em vão procuraremos na religião algum apoio para a ideia de que seres humanos – sobretudo crianças e escravos – não devem ser açoitados e surrados. Todos sabemos o que é a justiça islâmica «hard core» praticada em pleno século XXI em países como Arábia Saudita, Irão, etc. Todos sabemos o que foi a justiça praticada em países cristãos até à introdução de leis de inspiração napoleónica. Fazer justiça, penalizar criminosos e supostos criminosos, era infligir dor. Muita dor.
O Antigo Testamento está cheio de passagens em que não só é autorizado como vivamente recomendado que um pai bata nos seus filhos. Um chefe de família (na visão bíblica) é alguém que deve bater muito nos filhos e açoitar os escravos até estes ficarem com as costas bem ensanguentadas (Eclesiástico 42:5). Os Provérbios estão repletos de frases qu aconselham o pai a não poupar o bastão, porque levar pancada só faz bem, pois no fundo «educação» e «bastão» são a mesma coisa (Provérbios 22:15).
Esta mundividência assenta na ideia de que os seres humanos devem lidar deste modo uns com os outros porque é assim que Deus lida com os homens. Como se lê em Provérbios 3:12: «Todo aquele que Deus ama Ele instrui; Ele chicoteia todo o filho que Ele aceita». Se Deus, que nos ama, nos trata à bordoada (até por interposta pessoa: já Isaías 10:5 explicita que os crimes de guerra cometidos pelos assírios contra os judeus são o bastão de Deus), que mal pode haver em tratarmos também à pancada aqueles que amamos? Do ponto de vista da religião, nenhum. Já os Direitos Humanos – cuja fundamentação passa ao lado do que se lê na Bíblia – nos ensinam algo de bem diferente. Não tenho o direito de espancar a minha mulher, nem o meu filho, nem o meu escravo (aliás, não pode haver escravos).
Os meus amigos católicos ficam por vezes incomodados quando escrevo que o cristianismo conviveu despreocudamente com a escravatura enquanto pôde; e ninguém gosta de saber que, no século IV, a condição de escravo era tão desprezada por bispos cristãos que chegaram ao ponto de legislar que uma dona cristã culpada de matar uma escrava à pancada ficava só temporariamente impedida de comungar (cânon 5 do Concílio de Elvira).
Gostamos de pensar que esses bispos não estavam a ser verdadeiramente cristãos, porque Jesus, ele próprio o paradigma de um ser vulnerável que é flagelado com a máxima brutalidade, decerto teria desprovado que os mais fortes batam nos mais fracos. Não foi Jesus que disse «tal como quereis que convosco procedam as pessoas, procedei com elas do mesmo modo»? (Lucas 6:31)
No entanto, no mesmo Evangelho de Lucas há uma passagem que tem causado incómodo. Trata-se do momento em que Jesus diz aos seus discípulos que o escravo sabedor da vontade do seu dono e que não age em conformidade com essa vontade será severamente espancado, ao passo que aquele que contrariou, mas sem querer, a vontade do dono receberá um espancamento mais leve (Lucas 12:47-48).
A palavra usada para «espancar» (derō, δέρω) significa à letra «esfolar», tendo o mesmo radical da palavra grega para «pele» (dérma, δέρμα: cf. «dermatologia»). É uma palavra que ocorre 9 vezes na boca de Jesus nos evangelhos. Em 7 destas 9 ocorrências, ele usa-a para designar o espancamento cruel e injusto de um inocente. Na sua única ocorrência no Evangelho de João (18:23), é a palavra que Jesus usa quando leva uma bofetada e pergunta «porque me bates?» Nesta passagem de João, a vítima de violência injusta é ele (como é, metaforicamente, nas 7 outras ocorrências de «derō»). Na única vez em que o verbo é usado nos evangelhos pelo narrador, refere-se novamente a Jesus, troçado e espancado (Lucas 22:63).
Como podemos justificar então que Jesus, de forma atípica em Lucas 12:47-48, usa o verbo para designar um espancamento «justo», parecendo reconhecer justiça ao acto de o mais forte bater no mais fraco?
Uma hipótese é aceitarmos, simplesmente, que temos aqui um momento raro em que Jesus legitima a ideia típica do Antigo Testamento segundo a qual o chicote e o acicate servem para castigar cavalos e burros do mesmo modo que o bastão serve para castigar seres humanos (Provérbios 26:3). Pois na visão do Antigo Testamento, animais e humanos só aprendem se levarem pancada.
Outra hipótese é seguir A. Weiser (no livro «Die Knechtsgleichnisse der synoptischen Evangelien», Munique, 1971, pp. 222-224), que considerou as palavras de Jesus em Lucas 12:47-48 inautênticas e uma retroprojecção de ideias que ele nunca exprimiu, mas que lhe foram postas na boca por Lucas. (Logo na passagem seguinte, Lucas põe Jesus a dizer, também de forma única, que veio para deitar fogo ao mundo… talvez Lucas estivesse em «dia não» quando redigiu esta parte do seu evangelho…)
É aliciante seguir a interpretação de Weiser, mas mais aliciante ainda é seguir, mesmo que à revelia da Bíblia, a ideia de que não é à pancada que se ensina seja o que for; e que, acima de tudo, bater nos mais fracos (sejam eles crianças, escravos ou animais) só mostra uma coisa: desumanidade.