Bem-vindo de volta, Louis
Louis CK surpreendeu-nos com o lançamento de um special neste último sábado da mesma forma que há cerca de dois anos nos surpreendeu com o seu envolvimento na onda de escândalos da era #MeToo. Foi o tombar de gigante de um comediante de comediantes. Uns tentaram relativizar as suas acções em comparação com os restantes, outros separaram o homem da obra e houve quem o fizesse o bode expiatório para tudo o que estava de errado na grande máquina patriarcal branca de Hollywood. Nenhum dos “sobreviventes” do #MeToo conseguiu voltar como deve ser, tirando o Aziz Ansari que precisou de usar lápis de cera para explicar a diferença entre abuso sexual e o que mais tarde se veio a comprovar ser um “bad date” extrapolado. Louis saiu de cena da pior forma possível, quase como um personagem que o próprio poderia perfeitamente satirizar em palco.
Passaram-se três anos desde “2017”, o seu último special lançado através da Netflix. Em circunstâncias normais, CK teria voltado à escrita, testado o seu material nos Comedy Clubs da Big Apple, limado as arestas com a precisão de um ourives, levado a hora a auditórios, teatros e teríamos hoje disponíveis duas ou até mesmo três novas horas neste mesmo formato. Não podia. Era impensável para todos e até para o mesmo voltar a pisar um palco após o que se passou. Louis saiu de cena para mal ou bem de todos e do próprio.
Se é legítimo pensarmos assim, também podemos considerar que é impensável um comediante não voltar a fazer o seu trabalho. Estranho apenas a aceitação e reconhecimento de pena cumprida para criminosos condenados pelo sistema judicial e a recusa constante em aceitar a “mea culpa” de um homem que, tendo sem dúvida errado nos seus actos, não foi alvo de nenhum tipo de processo crime. Apontar o dedo aos erros de quem está por cima é fácil, olhar para o espelho e reconhecer na horizontal as nossas próprias falhas e lacunas enquanto ser humano é mais complicado e dá menos likes nas redes sociais, mas é esta a beleza intrínseca do “virtue signaling” tão popular nas hostes twitterianas. Louis CK pode ou não merecer o nosso perdão, pode ou não merecer a nossa aceitação enquanto homem e artista, mas merece voltar a trabalhar e actuar para quem decidiu perdoá-lo e aceitá-lo de volta enquanto homem, comediante e entertainer.
“Sincerely” é a hora de stand up que todos esperámos neste hiato de 3 anos. É o resultado de uma série de espectáculos atípicos de CK (entre os quais, se contabilizam as actuações esgotadas no Maxime Comedy Club em Lisboa) em que se viu obrigado, por força das circunstâncias, a fazer dos palcos europeus o espaço para testar material desta nova hora. Lentamente começou a actuar novamente nos palcos americanos – com alguma contestação de pessoas que pagavam única e exclusivamente para fazer heckling e depois se auto-intitularem como heróis no Twitter – para um público que decidiu acolher de volta uma das maiores vozes da comédia contemporânea. CK não estava de volta, mas estava a voltar ao seu ritmo e também ao ritmo do público. Da claustrofóbica plateia do Comedy Cellar em Nova Iorque, à ligeiramente mais confortável audiência de pequenos auditórios em várias cidades americanas sem a exuberância de actuações em grandes espaços a que nos habitou, CK fez o que se esperava de um comediante profissional: escreveu, levou a palco e fez rir.
Tal como “Live at the Beacon Theater” de 2011, Louis CK escolheu fazer a distribuição de “Sincerely” em nome próprio através do seu site em formato digital com a possibilidade de stream ou download. Este modelo de distribuição salvaguarda o “backlash” a qualquer plataforma de streaming por parte de clientes cuja vida seria destruída ao verem a cara de Louis CK nas sugestões, assim como garante que todo o lucro da venda digital reverta para o próprio. Excelente modelo, pese embora, ainda longe dos milhões chappellianos que a Netflix está disposta a pagar por uma hora de stand up de um comediante de topo.
Existe uma ironia subliminar na altura escolhida para o lançamento desta nova hora. Alguns poderão até mesmo acusar CK de ter provocado a pandemia através da masturbação compulsiva, mas o “last laugh” pertence agora ao comediante de Boston ao ter apanhado todos de surpresa em casa sem nada para fazer e com uma vontade anormal de entretenimento. Talvez não seja essa a mensagem que o mesmo queira passar, mas pelos vistos há coisas bem piores na vida do que um homem de meia-idade se ridicularizar em frente a quem quer que seja. Há sim, mas um mal não elimina o outro. O passado continua bem vivo no presente de Louis CK, irá continuar vivo na memória de todos e será um fardo que o mesmo terá de carregar por tempo indeterminado.
Inicialmente planeado para ser gravado na sua terra natal de Boston, “Sincerely” foi gravado em Washington D.C. antecipando o presente estado em que todos nos encontramos. Poderá ser essa a razão por se notar algum amadorismo charmoso na gravação, mas que ao mesmo tempo lhe confere uma aura intimista e pessoal. Uns irão laurear “Sincerely” como o melhor trabalho de CK, outros como o pior, alguns sairão satisfeitos e outros tantos continuarão a gritar no vazio de que o homem não tem o direito de fazer o que quer que seja ad eternum.
Fazer análise de material de comediantes é passatempo de bloggers frustrados sem qualquer conhecimento de causa sobre esta arte mal-amada, portanto, não me cabe a mim achar ou não achar o que é bom ou mau humor, porque é o mesmo que opinar sobre preferência de cores. Mas “Sincerely” é Louis CK depois disto tudo e, mais importante que isso, é o regresso do riso proibido numa altura em que o mesmo parece ter ganho outra dimensão e importância. Vejam ou não vejam, a decisão é vossa.
Precisamos de rir.
Bem-vindo de volta, Louis.
Texto de Rui Conceição, comediante.