Bem-vindos ao Admirável Mundo Novo

por Cronista convidado,    15 Agosto, 2020
Bem-vindos ao Admirável Mundo Novo
Capa da primeira edição do livro de Aldous Huxley
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Já passou cerca de um mês desde a data de estreia da série “Brave New World”. Devo dizer que não me cativou, desisti no terceiro episódio e fui reler o livro. Quanto mais penso na obra, quantas mais vezes a leio, mais perplexo fico com o quão correta a previsão do futuro, descrita por Aldous Huxley, estava.

Huxley foi professor de francês de George Orwell e a 21 de outubro de 1949, após receber uma cópia da obra Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, enviou uma carta ao seu antigo aluno. Na mesma pode ler-se o seguinte: “Creio que, na próxima geração, os governantes do mundo descobrirão que o condicionamento de crianças e a narco-hipnose são mais eficazes, enquanto instrumentos de governação, do que as associações e as prisões, e que a ânsia de poder pode ser igualmente satisfeita quer sugestionando os indivíduos para que adorem a sua escravidão, quer forçando-os a obedecerem pelo chicote e pela violência. Ou seja, penso que o pesadelo de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro está destinado a converter-se gradualmente no pesadelo de um mundo que tem mais afinidades com aquele que imaginei em Admirável Mundo Novo.”

Parece-me que a distopia imaginada por Orwell tem muito mais discussão no presente do que a obra de Aldous Huxley. Apesar de concordar que muitas das coisas retratadas em Mil Novecentos e Oitenta e Quatro podem ser comparadas com o crescente nacionalismo na UE e no mundo, assim como com a subida de líderes autoritários ao poder como Trump e Bolsonaro, ou velhos conhecidos como Putin ou a dinastia Kim, não consigo deixar de refletir que, na verdade, não somos governados diretamente pelo medo, a censura não é aplicada de forma agressiva e temos ‘liberdade’ para fazer as nossas escolhas individuais. Pelo menos no Ocidente e é no Ocidente que me vou focar. Em contrapartida, se analisarmos o estado único e o tipo de sociedade descrita nas páginas do Admirável Mundo Novo, as semelhanças são tremendas. Logo no segundo capítulo da obra de Huxley é revelado o porquê de não ter sido tolerado que os cidadãos pertencentes a uma classe inferior gastassem o tempo da comunidade com livros. Existia sempre o perigo de que estes indivíduos lessem qualquer coisa que ‘descondicionasse’ os seus reflexos:

“Ainda não havia muito tempo (um século, aproximadamente), os gamas, os deltas e até os épsilons tinham sido condicionados para gostar de flores – de flores em particular e da natureza selvagem em geral. O fim a atingir era fazer nascer neles o desejo de irem para o campo de cada vez que tivessem ocasião para isso, e obrigá-los, assim, a consumir meios de transporte.” (Aldous Huxley, 1932)

No Admirável Mundo Novo a sociedade estava organizada em castas, todos eram condicionados antes de nascerem. No lugar mais baixo encontravam-se os épsilons, seguido dos deltas e dos gamas. O topo ficava reservado para uma pequena percentagem, composta pelos deltas e alfas. Cada classe estava conformada com a sua posição e criticava as demais. Como o amor à natureza não fornecia trabalho a nenhuma fábrica, tomou-se a decisão de abolir o mesmo, pelo menos entre as classes inferiores. No entanto, a tendência para consumir transportes manteve-se como um dos principais objetivos na política do estado único. Era essencial que se continuasse a ir para o campo, mesmo que se não gostasse dele. Mas, o problema consistia em encontrar uma justificação cuja base fosse economicamente mais sólida do que uma simples afeição pelas flores e pelas paisagens. A solução foi esta:

“Condicionamos as massas a detestar o campo (…) mas simultaneamente condicionamo-las a gostar de todos os desportos de ar livre. Ao mesmo tempo, fazemos o necessário para que todos os desportos de ar livre exijam o emprego de complicada aparelhagem. Desta forma eles consomem artigos manufaturados e, ao mesmo tempo, transportes.” (Aldous Huxley, 1932)

Nós também somos condicionados, numa primeira fase, somos condicionados ainda antes de nascermos. A classe social que nos representa dita o lugar onde vivemos, o acesso ao tipo de educação e à qualidade dos cuidados de saúde, influenciando o resto da nossa vida. Já numa segunda fase, os aparelhos tecnológicos garantem que fiquemos agarrados a eles e que passemos a consumir desenfreadamente. Estudos na área da ciência cognitiva demonstram que quando recebemos uma notificação no telemóvel é libertada uma dose de dopamina no nosso sistema e que somos recompensados com uma sensação de prazer. Comparando a obra, de 1932 com a realidade de 2020, a diferença entre nós e as crianças que são condicionadas a odiar livros e flores é que o nosso condicionamento acontece enquanto estamos totalmente acordados.

Este é o génio de Aldous Huxley que percebeu o que iria acontecer nas sociedades capitalistas do futuro. Numa economia que é definida pelo consumo e ditada pela publicidade, como forma de condicionamento no comportamento humano, todos estamos tranquilos, pacíficos, desde que as nossas necessidades estejam satisfeitas. Não precisamos de sentir que fomos condicionados para sermos condicionados. É normal fazer algum tipo de comentário sobre um produto em voz alta e ser caçado pelo google, ou fazer uma pesquisa online e ser bombardeado com todo o tipo de ofertas. Privacidade nula e tentativas de condicionamento agressivas a que estamos tão bem habituados.

Outro fator central na obra de Huxley é a soma, uma droga que presenteia quem a consome com gratificação instantânea e que permite ao estado controlar a população. A droga é um símbolo da poderosa influência da ciência e da tecnologia na sociedade do Admirável Mundo Novo e como podemos averiguar, mais especificamente no capítulo dezassete do livro, estes são os seus efeitos:

“Hoje já não há guerra. Toma-se o maior cuidado para evitar que se ame exageradamente seja quem for. Não há nada que se assemelhe a um juramento de fidelidade múltipla; de tal modo se está condicionado que ninguém pode deixar de fazer o que tem de fazer. E se aquilo que há a fazer é, no conjunto, tão agradável, deixa-se uma tão grande margem a um tão grande número de impulsos naturais, que não há verdadeiramente tentações a que seja necessário resistir. E se alguma vez, por qualquer infelicidade, acontece, por esta ou aquela razão alguma contrariedade, pois bem, há sempre a soma que permite uma fuga à realidade. Há sempre soma para acalmar a cólera, para fazer a reconciliação com os inimigos, para dar paciência e para ajudar a suportar os dissabores. Outrora, não se podiam conseguir todas estas coisas senão com grande esforço e depois de anos de penoso treino moral. Agora, tomam-se dois ou três comprimidos de meio grama e é tudo. Pode-se trazer connosco, num frasco, pelo menos metade da própria moralidade. O cristianismo sem lágrimas, eis o que é a soma.” (Aldous Huxley, 1932)

De regresso à realidade, é possível constatar que os ansiolíticos, os antidepressivos e os antibióticos são a verdadeira soma. Nos últimos três meses foram vendidas mais de cinco milhões de embalagens de antidepressivos em Portugal. Somos o quinto país da OCDE que mais consome este tipo de drogas. Pergunto-me o quão difícil será, para quem não tem capacidade monetária, conseguir uma consulta num psicólogo através do sistema nacional de saúde. Deve ser mais fácil o médico de família, quando existe, passar uma receita e adormecer a mente, problema resolvido.

Estes exemplos e outros que Huxley previu fazem parte da revolução tecnológica que caracteriza a nossa era. A guerra acontece noutro sítio, enquanto observamos calmamente nos nossos telemóveis. Partilhamos a nossa vida, observamos a dos outros, obtemos likes, doses de dopamina e realização pessoal. Os aparelhos que carregamos no bolso são indispensáveis, acompanham-nos diariamente e devido à produção em massa, assim como à constante procura, milhões de pessoas morrem devido à exploração de coltan. O que importa? As mortes são um espetáculo que acontece fora da nossa realidade, caracterizada pelo consumo, condicionada pela publicidade e controlada pela tecnologia e grandes empresas.

É caso para dizer: sejam bem-vindos ao Admirável Mundo Novo!

Crónica de Paulo Rodrigues Primaz

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