Bilhete de Humanidade

por Comunidade Cultura e Arte,    19 Março, 2020
Bilhete de Humanidade

Para começo de conversa, estou em Macau. Não escrevo isto alapado num qualquer lugar distante.

Há tanta coisa errada com este despacho do Chefe do Executivo. Comecemos pelo mais óbvio e que está patente no pequeno texto da petição agora lançada: como é possível proibir-se a entrada em Macau a pessoas que vivem em Macau, trabalham em Macau, têm toda a sua vida em Macau e são, em grande medida, a camada mais frágil do tecido social? Sabe o Governo os motivos de ausência do território de todos os trabalhadores não-residentes (tnr)?

Depois, assinar um despacho destes para entrar em efeito horas depois é simplesmente um acto desumano. Concedendo que se queira fechar por completo as fronteiras — muito difícil num território que é tudo menos auto-suficiente, mas adiante — então dê-se tempo às pessoas para regressar. E menos de 24 horas não é tempo, é crueldade.

Agora avancemos para terrenos mais pantanosos: esta medida aplica-se a todos os tnr com excepção dos tnr da China Continental, Hong Kong e Taiwan, dessa falácia que é a Grande China e que tenta uma e outra vez dobrar Taiwan. Que alguém explique, então, a lógica desta medida. Por um lado, como se previne o contágio e a entrada de pessoas potencialmente infectadas desta maneira? Por outro, concedendo que, vá lá, por solidariedade nacional isto se aplicasse ao Continente e a Hong Kong, Taiwan? É o direito de entrada étnico? Interessante.

Termino dizendo que o medo desumaniza e é um vírus muito mas muito mais perigoso que o covid-19, como são a ignorância e a falta de empatia para com o nosso semelhante. Um vírus não vai à tua carteira ver se tens bir ou blue card ou nada — e é por isso que esta medida carece de qualquer sentido. Não me cabe a mim mas aos líderes das diferentes comunidades em Macau fazer passar uma mensagem de humanidade e de condenação veemente deste despacho do Chefe do Executivo.

Se a petição que agora arranca puder ajudar, óptimo.

Texto de Hélder Beja
Hélder Beja é o fundador e director da Capítulo Oriental, primeira agência literária e editora a trabalhar entre a Ásia e os Países de Língua Portuguesa, com base em Macau. Trabalhou para vários meios de comunicação em Portugal, incluindo os jornais Público, Sexta e i, revista Sábado e revista literária Os Meus Livros. Chegou a Macau em 2010, onde foi jornalista, editor e finalmente sub-director do jornal Ponto Final; editor-chefe da revista bilingue (Chinês-Inglês) de arte e lifestyle Macau Closer e colaborador de outros de publicações como Macau Business e Plataforma Macau. Em 2012, co-fundou o Festival Literário de Macau – Rota das Letras, do qual foi director de programação durante sete edições, até 2018.

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