Bilheteira de monólogo de Ivo Canelas reverte para a SOS Voz Amiga e o Fundo de Solidariedade com a Cultura

por Linda Formiga,    23 Novembro, 2020
Bilheteira de monólogo de Ivo Canelas reverte para a SOS Voz Amiga e o Fundo de Solidariedade com a Cultura
Ivo Canelas – Todas as Coisas Maravilhosas – Fotografia Linda Formiga/CCA

Em vésperas da manifestação de apoio à cultura no Campo Pequeno, Ivo Canelas dedicou o espectáculo “Todas as Coisas Maravilhosas” à SOS Voz Amiga e ao Fundo de Solidariedade com a Cultura, revertendo para estas as receitas integrais de bilheteira do espectáculo do dia 20 de Novembro. 

Quando, há 2 meses, falámos com Ivo Canelas, a tónica sobre a saúde mental e sobre o estado de definhamento crónico da Cultura esteve sempre presente, não só pela peça em si, mas também pelo olhar aguçado de alguém com 25 anos de carreira no mundo das artes. Então, o actor estava reticente com a forma como o público iria reagir no meio de todas as contingências necessárias para um evento seguro. As reticências, porém, rapidamente desvaneceram, com as máscaras a proporcionarem “uma maior proteção emocional”. Com menos pessoas, houve mais intimidade ainda que com a distância obrigatória rigorosamente mantida, mas as contingências, que entraram sub-repticiamente no texto, ensinaram-nos que “acima de tudo, a solução está no problema, ao incluirmos o álcool gel, ao incluirmos as máscaras, ao incluirmos humor sobre isso também faz com que nós nos consigamos rir desta pandemia que alimenta também o espectáculo com uma certa poesia contrariando a distância”. 

O texto de “Todas as coisas maravilhosas”, original de Duncan MacMillan e traduzido por Ivo Canelas e Margarida Vale de Gato, é, nas palavras de Ivo Canelas, “de uma aparente enorme simplicidade, que acho que alavanca a forma como nos faz envolver”. Na perspectiva de quem viu o espectáculo várias vezes (como é o caso de quem assina este artigo), este é um texto sobre quase todas as idiossincrasias da vida. A perda, o medo da perda que nos corrói lentamente, a aceitação, a procura por um olhar de afecto e o afecto em si, mas também os pequenos e enormes prazeres da vida, as pequenas alegrias, o palpitar de uma paixão, o conforto de fazer as pazes com o passado e “todas as coisas maravilhosas” no caminho. Na interpretação de Ivo Canelas vemo-nos a nós e constatamos por nós, e por spoilers que outras vidas nos vão dando, que todas as possíveis fontes de sofrimento e de felicidade estão ali, à mão de semear. Mas o que “Todas as coisas maravilhosas” nos ensina também é o facto de não termos de estar sozinhos e de não estarmos sozinhos nos pontos altos e baixos da vida. 

Ivo Canelas – Todas as Coisas Maravilhosas – Fotografia Linda Formiga/CCA

A fragilidade dos tempos que se vivem reflecte-se não só na peça como também na vida real e foi por isso que Ivo Canelas, em conjunto com a produtora H2N, decidiu dedicar a sessão do dia 20 de Novembro à SOS Voz Amiga, que foi, e tem sido, parte fundamental na concepção do espectáculo, e ao Fundo de Solidariedade com a Cultura. Para o actor, “estamos só a dar os primeiros passos, tanto na crise económica como na saúde mental, porque o pior ainda está por vir. As repercussões económicas de tudo isto estão intimamente ligadas com as questões de saúde mental. O facto de teres ou não uma casa que é nossa, que podemos pagar ou não, termos um emprego ou não, são fontes de serenidade. Se ainda por cima tivermos a possibilidade de fazer um trabalho que gostamos e não temos a ansiedade de ‘será que vai acabar a qualquer momento’, mais serenidade temos. Quem tem responsabilidades como filhos, mais ansiedade naturalmente terá.” 

Francisco Paulino, presidente da SOS Voz Amiga (entrevista completa em breve), já assistiu por diversas vezes a “Todas as coisas maravilhosas”. A temática da depressão e do suicídio e todo este tocar na ferida “é cada vez mais importante. Por um lado, há um estigma enorme porque muitas pessoas com depressão ainda são olhadas como preguiçosas. A pessoa que está em sofrimento e que ouve uma coisa destas ainda fica pior. (…) A saúde mental tem de ser olhada de outra maneira. E esta pandemia que estamos a atravessar vai fazer muito sangue”. Francisco Paulino disse-nos ainda que a linha de apoio funciona como um “barómetro da economia do país. Sempre que há uma crise, as nossas chamadas aumentam, porque crises económicas representam situações de quebras de rendimentos, falhas de compromissos, desespero, ideias suicidas e por aí fora”. Nos últimos meses, a linha SOS Voz Amiga viu duplicar o número de chamadas recebidas, permitindo identificar que “a crise é de saúde mental, mas já está a haver uma parte económica aí a provocar muito sofrimento nas pessoas”. 

Se a saúde mental é “o parente pobre da saúde em Portugal”, nas palavras de Francisco Paulino, a cultura é o elemento pobre da economia. Têm existido várias iniciativas que visam ajudar aqueles que estão impossibilitados de trabalhar devido às restrições na realização de espectáculos. O Fundo de Solidariedade com a Cultura é uma dessas iniciativas e para Hugo Nóbrega, da produtora H2N, é urgente mostrar que a cultura é segura, e tentar ultrapassar a “crise que este sector está a atravessar, os próprios promotores estão com dificuldade em tornar os projectos rentáveis, e por conseguinte isso reflete-se nas pessoas que trabalham neles”. 

O carácter solidário de algumas sessões do monólogo de Duncan MacMillan “surge muito no facto de o Ivo ter um propósito para fazer esta peça”, diz Hugo Nóbrega. “Quando começámos esta temporada, houve sessões solidárias para médicos e profissionais de saúde, e nesta, que era suposto ser a última sessão, o Ivo também pensou nela para ser uma sessão voluntária para a SOS Voz Amiga e Fundo de Solidariedade. Esta peça fala sobre saúde mental, porque acho que as pessoas estão mais preparadas para entrar nesta montanha russa das coisas simples da vida, que esta peça fala, e no quanto é fácil as pessoas deprimirem em fases de vida.” 

Hugo Nóbrega – Fotografia Linda Formiga/CCA

Se há uma grande aceitação por parte do público, por outro lado, para Hugo Nóbrega, há alguma dificuldade em agendar espectáculos em localidades menos visitadas por produções, por alguma dificuldade na articulação com os municípios. Com as datas do espectáculo a serem abertas semana a semana, e “enquanto houver energia e vontade e esta circunstância”, é da vontade de todos levar esta peça a outros locais, bastando para isso um espaço aberto, que permita ter um palco ao nível do público, e flexibilidade. O “monólogo”, que tem uma data prevista para o seu fim, continuará entretanto a ser agendado enquanto “houver pernas para andar”, como canta Jorge Palma, com a ajuda de “120 pessoas, 240 olhos”, e com a presença da assistente de produção Dora Bernardo, amiga pessoal do actor e exemplo do quão vitais são, a vários níveis, os trabalhadores “invisíveis” no mundo do espectáculo. Para o actor “nos dias em que ela chega mais tarde, apercebo-me da dureza do que é fazer um monólogo, porque sempre que chego ela já cá está. O que eu acho que me dói mais, o que eu acho estranho, é chegar ao camarim e não estar ninguém”. 

Quanto a outros projectos, Ivo Canelas inaugurou recentemente a sua primeira exposição de fotografia “Suspension of Disbelief” na Galeria Municipal Vieira da Silva em Loures, com entrada livre e patente até 27 de Fevereiro de 2021. De 24 de Junho a 4 de Julho, subirá ao palco do Teatro São Luiz em “Cenas da Vida Conjugal” com texto de Ingmar Bergmann, encenação de Rita Calçada Bastos, e em contracena com Katrin Kaasa. 

“Todas as Coisas Maravilhosas” continua em cena no Estúdio Time Out, em Lisboa, à qual vão sendo adicionadas novas datas com base na disponibilidade de Ivo Canelas e de toda a equipa. As novas datas são habitualmente anunciadas na conta de Instagram de Ivo Canelas.

Apoio a artistas e profissionais do espectáculo: Fundo de Solidariedade com a Cultura e União Audiovisual (entrevista com Liliana Bandeira aqui)

Centro SOS-Voz Amiga: ajuda na solidão, ansiedade, depressão e risco de suicídio
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