Billie Eilish e as garras da sua ascensão meteórica
O nome de Billie Eilish é tão definidor do léxico pop recente que provoca uma certa dissonância em nós quando falamos da artista. É que Eilish parece simultaneamente ter surgido há meras semanas como ter estado sempre presente no mundo da música, de alguma forma. As suas diferentes imagens e eras sobrepõem-se no nosso imaginário colectivo: a imagética gótica e carregada de negrume que definiu a fase do seu álbum de estreia, When We All Fall Asleep, Where Do We Go?; a sua fotografia a carregar quatro estatuetas dos Grammys, em 2020; o visual clássico de sumptuoso vestido e cabelo louro com que se apresentou na Met Gala de 2021 e que prenunciou a mudança de paradigma para Happier Than Ever, o seu segundo trabalho de estúdio; o estilo de skater e raízes do cabelo vermelhas com que se tem apresentado recentemente, incluindo na aparição surpresa que fez no Coachella deste ano, ao lado de Lana del Rey.
Desde que “Ocean Eyes”, a canção que atraiu os holofotes para Billie Eilish, foi lançada no SoundCloud, há quase 9 anos, e passando por todos estes momentos da sua ainda curta mas prolífica carreira, a artista de apenas 22 anos alcançou rapidamente uma popularidade estratosférica na esfera pop, comparável a nomes como Beyoncé, Rihanna ou Taylor Swift. Ao longo destes últimos anos, acompanhámos o crescimento daquela que, durante uns anos, foi uma das adolescentes mais visíveis do mundo. Essa frase por si só já é suficiente para nos lançar um arrepio pela espinha, pois um nível tão obsceno de exposição não deveria ser reservado a ninguém, muito menos a alguém que ainda está em idade formativa.
Ainda antes de lançar qualquer trabalho de estúdio, o zunzum à volta das suas primeiras canções, escritas com e produzidas pelo seu irmão, Finneas — algo que não mudou até hoje em dia — aguçaram a curiosidade à volta da jovem cuja persona ressoou principalmente em adolescentes, que viam em Billie alguém à sua imagem. O seu EP de estreia, Don’t Smile at Me, apresentou ao mundo canções como “Bellyache”, “Idontwannabeyouanymore” ou “Watch”, que se tornaram figurantes recorrentes nas playlists mais badaladas do Spotify e bem colocadas na esfera radiofónica e audiovisual. O palco estava montado para o estrelato.
Agora, só faltava o êxito que pusesse o nome de Billie Eilish nas bocas de outras gerações. Isso chegou sob a forma do quinto single do seu primeiro álbum, uma canção “Bad Guy”, canção que se espalhou como um fogo ateado com gasolina. O processo de criação de When We All Fall Asleep, Where Do We Go? foi exactamente o que se esperaria de um trabalho feito à medida para ser um hit: esgotante, cheio de pressão e indutor de ansiedade. Efectivamente, o esforço compensou e Billie Eilish tornou-se aparentemente omnipresente, mas não sem uma série de dificuldades para a mesma.
A maneira relativamente calculista e fria como descrevemos parte da sua ascensão meteórica à fama reflecte algo sobre a forma como a mesma sucedeu. Por mais que Billie tenha chegado aos ouvidos de muita gente aparentemente do nada, a verdade é que a sua carreira, como a de muitos outros artistas, foi cuidadosamente planeada e pensada para a artista chegar onde chegou. Isso envolveu equipas de managers, publicidade, estrategas, assim como contactos e contratos bem feitos. Ora, isto por si só não é mau, por mais que se tente usar isso de forma cínica contra a sua música. É que isto em nada lhe retira o seu evidente talento e personalidade interessante, que claramente joga a seu favor e facilita o seu entrosamento na cena musical.
Claro que é sempre difícil entender até que ponto as criações de artistas desta magnitude são descoladas das pretensões do mainstream, ainda quando os artistas são vendidos como algo “fora da caixa”. Ainda assim, e apesar de tudo, Billie parece ter estado em relativo controlo da sua imagem e arte. Talvez isso se deva parcialmente à sua família. Os seus pais, Patrick O’Connell e Maggie Baird, são ambos actores e músicos e, por isso, relativamente habituados aos meandros da fama. Mas a verdade é que a fama dificilmente é algo fácil. Essa dificuldade torna-se ainda mais exacerbada para alguém que tem de lidar com traumas de infância (Billie foi abusada sexualmente quando era mais nova) e diferentes patologias — como o caso dos seus diagnosticados síndrome de Tourette e depressão.
O escrutínio que uma jovem, que durante boa parte desse processo era menor de idade, sofre quando está numa posição de destaque como a de Billie Eilish foi algo que sempre a deixou francamente desconfortável. Por entre o costumeiro sexismo, julgamentos da sua imagem e estilo, críticas vis à sua arte e até assédio por parte de fãs obsessivos e perturbados, a artista canalizou esse desconforto para a crítica acutilante de Happier Than Ever. O seu segundo álbum soa mais natural, talvez porque, segundo Billie, foi um trabalho com pouca intervenção por parte da editora. Parece que o esforço investido ao longo da sua carreira realmente levou Billie Eilish a um ponto em que consegue passar as mensagens que pretende e fazer a música que realmente quer fazer. Nessa altura, a sua arte vira-se contra a sociedade patriarcal e o sistema que a colocou onde está, ao mesmo tempo que a deturpou de maneiras incontornáveis.
Nesse sentido, as canções de Happier Than Ever expõem e pretendem desmantelar as ferramentas desse mesmo sistema. “Your Power” é uma balada que, nas palavras de Eilish, é “uma carta aberta a todas as pessoas que se aproveitam” do seu próprio poder e demonstra as consequências disso, fazendo referências ao abuso sexual que a própria sofreu. O interlúdio “Not Your Responsibility” refere-se a todas as críticas que a artista recebia por usar roupas largas e confortáveis, expondo os dois pesos e duas medidas de uma sociedade que tanto critica as mulheres por usar pouca roupa ou muita. Esse momento de spoken word chama ainda a atenção para a forma como as críticas infundadas e desconsideradas podem ser perigosas para as noções de imagem e valor próprio, principalmente no que toca às mulheres. “Getting Older” demonstra o cansaço da artista para quem a música parece ter perdido um certo brilho, devido a todas as situações indissociáveis da sua presença na indústria musical. “As coisas das quais eu desfrutava / Agora apenas me mantêm empregada”, canta ela no seu típico registo preguiçoso, que aqui passa a ideia de esgotamento.
Talvez para mudar então o paradigma, a estratégia de divulgação do terceiro álbum da artista, Hit Me Hard and Soft, subverteu expectativas ao não revelar nenhum single de forma oficial antes do lançamento. Da sobre-exposição do início da sua carreira, agora a curiosidade aguça-se pelo secretismo, uma estratégia que não só funciona melhor para artistas ao nível de Billie Eilish, como provavelmente também os salvaguardará de processos extenuantes de divulgação. Já há uma tour marcada para apresentar Hit Me Hard and Soft (que não passará por Portugal), mas, de resto, pouco se sabia do terceiro álbum de umas artistas mais cobiçadas da pop. Agora finalmente temos a oportunidade de o ouvir.