Blues de Sísifo-feira

por Leonardo Cruz,    5 Junho, 2022
Blues de Sísifo-feira
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Tive a sorte de viver a minha adolescência na década de 90. Principalmente a nível musical. Só para terem uma ideia, a minha alma melómana de 11 anos passou, em poucos dias, de atabalhoadas danças ao som de Pump Up the Jam dos Technotronic para gritos raivosos de “a denial”, tentando imitar o cabeludo vocalista de uns tais de Nirvana, no espelho que ele prometia quebrar. Tudo por causa daqueles magnéticos acordes iniciais de Smells Like Teen Spirit, que me sugaram para uma espécie de vórtice de “teenage angst” do qual temo nunca ter saído. É curioso como os gostos musicais nos definem e aproximam de pessoas com gosto comum; assim como, no fundo, acabam por indicar-nos um caminho. Trinta anos depois, distingo dois grupos de amigos da minha escola que se apartaram, só porque, para um deles, o coração menos alienado parecia bater mais forte pelo Damon Albarn do que pelo Chris Cornell, não que eu tenha algo contra esses totós do britpop.

Assim que percebi que a música era o veículo mais rápido para o exorcismo dos meus fantasmas, e o rock o seu mais potente motor, passei a ter no meu walkman um companheiro fiel e inseparável. De tal forma que não consigo ainda ouvir Bone Machine dos Pixies sem me transportar de imediato para manhãs chuvosas de caminho a penantes para a escola. “Chuvosas” porque estas memórias carecem sempre de algum dramatismo, e a banda de Black Francis, Kim Deal, Joey Santiago e David Lovering merece mais do que paisagens fúteis de céu límpido e soalheiro.

Imagem via 9gag.com

Este poder de transporte para outras eras, sítios ou estados de espírito, pelo menos de forma tão imediata, só consigo identificar na música. Sim, um cheiro é capaz de devolver-nos a infância, um filme permite mudar o nosso entendimento de algo; ou um poema ou uma pintura. É possível que um romance transforme o modo como vemos o mundo. O vislumbre de um manjerico pode trazer-me de volta a minha avó. Mas só aquilo que os antigos gregos chamavam “a arte das musas” consegue tudo isso de modo quase instantâneo. Tem a capacidade de transformar o nosso dia, mesmo quando menos esperamos.

Esta semana, sete da manhã de segunda-feira, conduzia para o trabalho com a alegria de uma vaca que visita um talho. A missão dos meus olhos inchados era prejudicada por uma chuva torrencial. Árdua, pesada, geladíssima, nada como aquela dos meus tempos de estudante, ao som dos Pixies, que ao pé desta me parece agora morna e reconfortante. Aumentei o som do rádio e surpreendo-me com uma canção que desconhecia. De início, parecia-me Father John Misty, qualquer coisa do género, meio Fleet Foxes (provavelmente algo que a malta daquela tribo do britpop apreciaria e que o eu das manhãs diluvianas de fato e gravata, trinta anos depois, também). Começa com um assobio indiciando a “feel good song” que o meu cérebro precisava naquele momento. Prestando atenção à letra, sinto no assobio um engodo para algo mais sério (sou público fácil para cocktails de melodias alegres com letras sombrias). Fala de Sísifo, o maior ofensor dos deuses gregos e, por isso, condenado na terra dos mortos a empurrar uma pedra gigantesca até ao lugar mais alto da montanha, de onde ela rola de volta, obrigando-o a repetir a tarefa uma e outra vez. Sísifo tornou-se símbolo do trabalho rotineiro e cansativo, e só estou admirado porque nunca deram o seu nome às segundas-feiras.

A canção, inesperada, teve o condão de mudar o meu humor. Não tendo transformado a minha vida, contudo pôs-me a assobiar enquanto pensava “vamos lá agarrar essa pedra mais uma vez”. Pode ser poucochinho para discurso motivacional, mas convenhamos: era uma canção do Andrew Bird, não um livro de autoajuda de um desses cromos que ouvem Oasis.

Ao passar por baixo de um viaduto, a chuva interrompeu o seu ruído: talvez não fosse esse o objetivo do autor, talvez ele sugira que se deixe rolar a pedra — se ela destruir a casa (física ou metafórica), esta já estava perdida, de qualquer forma. Porventura o propósito de Bird com esta letra seja o de mostrar que o ódio às segundas-feiras tenha mais que ver connosco e as nossas escolhas do que com o destino. Mas é possível que isso seja demasiado para as sete da manhã de uma segunda-feira.

Assobiando deixei-me ir, com Sísifo no pensamento: há conforto nesta fraternidade. Um dia deixarei rolar. Agora, venha de lá esse calhau.

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