‘Boarding House Reach’, o manifesto de Jack White de boas-vindas ao mundo digital

por Miguel de Almeida Santos,    18 Abril, 2018
‘Boarding House Reach’, o manifesto de Jack White de boas-vindas ao mundo digital
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Quase dezoito anos depois de “Fell in Love with a Girl” ter catapultado os The White Stripes para a fama internacional, não há como negar o papel preponderante da banda em trazer o garage rock de volta para as bocas do mundo, um papel principalmente desempenhado pelo seu frontman, Jack White. O artista americano tem sob a sua alçada uma extensa e proficiente carreira, seja com os The White Stripes – o riff de guitarra de “Seven Nation Army”, hoje entoado em estádios e eventos desportivos pelo mundo fora, muito provavelmente destronou “Smoke on the Water” dos Deep Purple como o motivo musical que mais iniciados à guitarra aprendem – com os The Raconteurs, com os The Dead Weather ou, mais recentemente, através da sua carreira a solo. Em todos os projectos, transparece um amor pelos sons de outros tempos, a sua música é uma ode aos blues, country e à música de garagem. Por todo o sangue, suor e lágrimas que Jack White dedicou, podemos afirmar que o seu lugar como uma das principais figuras do rock dos tempos modernos nunca será esquecido.

O artista sempre optou por uma abordagem do it yourself e em fazer a arte com o que está à mão. O seu amor por instrumentos vintage é bem conhecido, e as suas técnicas de produção regem-se pelo uso de equipamentos antigos. Não há cá guitarras novas em folha ou produção com auxílio a ferramentas digitais. Ou pelo menos não havia, até ao seu mais recente álbum Boarding House Reach. Pela primeira vez, Jack White decidiu aventurar-se pelo mundo digital. Apesar das músicas serem gravadas em cassete, a edição e subsequente produção foi feita em Pro Tools, um software de edição e produção musical. Este pequeno pormenor é mais do que uma conveniência: ao longo do decorrer do álbum, somos confrontados com o manifesto de Jack White de boas vindas ao mundo digital, e sem dúvida o trabalho mais expansivo do músico até à data.

Jack White / Fotografia de Maria Alejandra Cardona, Los Angeles Times

Referir-nos a Jack White como um artista expansivo parece algo antitético. O norte americano sempre abordou a música através de estruturas simples e facilmente reconhecíveis mas em Boarding House Reach dá largas à sua imaginação, apesar de o fazer com apoio dos seus trunfos conhecidos. “Corporation” é construída à volta de um riff típico de White, auxiliado por uma linha de teclas absolutamente deslumbrante, blues que arrepia. Mas a progressão da música torna-a em algo distinto, parecendo a certa altura quase uma improvisação capturada num concerto, com cada instrumento a fazer o que lhe apetece dentro da harmonia e espírito enquanto Jack White grita de forma assertiva e distorcida. “Respect Commander” surge no espectro oposto, é uma música muito bem estruturada com uma grande produção. A bateria a todo o vapor é complementada por um baixo lustroso que trepa pela música acima de forma fantástica e ao longo da faixa e das suas várias partes vão-se ouvindo alguns elementos digitais acoplados a um solo rasgado de White.

A fusão entre esses dois mundos – o digital e o analógico – é extremamente visível em “What’s Done Is Done”. Alia uma sonoridade country a um instrumental digital de forma imaculada, algo que nem sempre é fácil, como demonstrado no último álbum de Justin Timberlake. Os dois mundos complementam-se sem se nunca suplantarem um ao outro, perfeitamente fundidos numa harmonia musical. Mas em “Get in the Mind Shaft” sente-se verdadeiramente o abraçar de Jack White de um mundo digital. A música é permeada por sintetizadores e uma voz robótica que tem tanto de futurista como de retro, um efeito que Jack aplica à sua voz (ele torna-se o digital). O tema colide sentimentos, a tristeza dos seus momentos iniciais com a investida da segunda parte, com um funk inerente bem explorado, exploração essa que atinge o seu auge em “Ice Station Zebra”. A batida não destoaria de uma música de hip hop nem o primeiro verso praticamente declamado de White, de letra interessante a discutir a frivolidade da suposta originalidade pela qual muitos artistas vivem.

No entanto, nem todas as divagações de White trazem frutos. “Connected by Love” inicia o álbum de uma forma extremamente banal, demonstrado uma abordagem mais electrónica que não esconde os atributos genéricos deste tema que clama por amor. Em “Hypermisophoniac”, o artista mostra um universo populado por vários tipos de sons, uns que surgem uma só vez e outros que se fazem ouvir ao longo da música. Mas é demasiado “infértil”, nunca arranca verdadeiramente porque vai alternando entre momentos demasiado repetidos, é só mais uma música de Jack White com um som desconfortável acrescentado. Apesar de nem sempre resultar, a exploração musical demonstrada em Boarding House Reach pauta o início de uma nova etapa para White. Novas guitarras, novos métodos de produção, e alguns novos pormenores na sua música. Mas tudo o resto mantém-se, não há nada verdadeiramente novo que White tenha para oferecer. Os solos são destruidores e arranham os tímpanos, os riffs são exímios e intoxicantes, mas não se esperava menos deste músico e disso ele já mostrou ser capaz. Refugia-se no meio de um ambiente digital para mostrar mais daquilo a que já nos habituou.

O álbum termina com “Humoresque”, com letra do gangster mais conhecido do planeta, Al Capone. A música alterna entre descontracção e tensão, talvez para mostrar esta dualidade de Capone. Mas a música simboliza também a própria dualidade de White: um artista daqueles que já não existem, e o homem que decide abraçar as novas tecnologias aplicadas à música. A aversão de Jack White ao mundo digital tem uma razão de ser: anseia pelos tempos em que a música era real, não era difundida em massa e as pessoas estabeleciam uma relação verdadeiramente empática com a música que ouviam. Não era mais um objecto de consumo, banalizado pela investida rompante dos serviços de streaming. Boarding House Reach é Jack White a fazer a sua paz com esse mundo. Não é um cruzar de braços e uma rendição, é usar as ferramentas do futuro para enaltecer os valores intemporais que defende. É perceber que no final de contas o importante não é como a música é produzida, o importante é que soe exactamente como o artista quer.

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