Boletim de voto
Alguns de vocês nunca votaram, alguns de vocês votam sempre no mesmo, alguns de vocês preparam os gatafunhos ordinários que estão prestes a desenhar no boletim de voto. Alguns são assim, mas eu não. Voto desde que me lembro e nunca falhei nenhum acto eleitoral. É coisa dos meus pais. Eram daqueles que me contavam de como era antes e de como eu, nascido depois do 25 de Abril, tinha nascido com essa sorte. Não via as coisas assim. Eu tinha nascido no meu dia de nascimento e, como eles, não tinha tido opção nessa matéria. Mas lá que gostava de votar, gostava e assim que pude coloquei-me na fila para ser membro de uma secção de voto.
Aqui, da minha cadeira, consigo observar todo o pavilhão. A sua nave superior de traves metálicas e no seu chão, uniformemente envernizado, linhas de várias cores para lado nenhum. Estamos num recinto desportivo, agora; mas antes, a minha secção, que sempre foi a vinte e sete, era do outro lado da rua, no mercado municipal. Até às obras foi aí que fui encontrando e reecontrando novos colegas. Gente de todos os quadrantes políticos, mas raramente mais novos do que eu. Eu era o menino, o rapaz, o puto da secção vnte e sete. Ainda me lembro de chegar na primeira vez, das dúvidas, dos colegas que me contavam como isto se tinha tornado uma paixão para eles, Há trinta anos que estou nesta mesa, sejam legislativas, europeias, autárquicas ou presidenciais, estou sempre aqui. Vais ver que vais gostar disto, puto. Tinham razão, gostei.
A porta estava aberta e ao fundo começavam a entrar os eleitores mais madrugadores e o tipo ao meu lado foi-me explicando a sua teoria sobre as hordas dos horários, Começam sempre por vir os velhotes que não conseguem dormir até mais tarde e um ou outro que ainda vai trabalhar a seguir. Depois vêm as mulheres dos velhotes, que foram à missa por elas e pelos maridos que não conseguem dormir até tarde, e só a seguir chegam os familiares. Os familiares dividem-se em dois grupos: Os do antes do almoço e os do depois do almoço, mas a coisa funciona sempre da mesma maneira, adoram trazer os filhos para lhes mostrar a alegria da democracia. A democracia é alegre? Ainda lhe perguntei antes de começar a verificar o primeiro nome do dia no meu caderno eleitoral… José Maria Capitel dos Santos… Verás que sim.
O primeiro dos dias foi alegre e até hoje concordo com ele. A alegria de ver as pessoas a decidirem livremente quem as governa mantém-se até hoje. Devo ter revelado o meu pensamento, ou falado em voz alta, porque o novo companheiro de mesa deste ano respondeu-me com cinismo imediato, O Povo não manda nada, quem manda são sempre os mesmos e as pessoas só aqui vêm para consumar esse facto. Era novo na minha mesa, tínhamos os nossos colegas que regularmente revíamos e até com alguns íamos mantendo contacto fora dos períodos eleitoriais, mas este era novo na mesa e no pavilhão, O colega gosta de futebol? Perguntei eu para desanuviar aquilo. Claro, quem é que não gosta? A nossa chefe de mesa, não, pois não Lurdes? Sabes que não. Portem-se bem, rapazes, vem aí a gorda. Senhora Presidente, como está? Muito bem, está tudo a correr bem? Tudo sim, muito bem. Receberam os vossos almoços? Sim, sim, Senhora Presidente, tudo confirmado. Muito bem, bom trabalho então. Agarrou o boletim, três passos depois estava atrás do biombo e, três segundos mais tarde, estava de volta à mesa com o boletim já dobrado em quatro, Cá está. Obrigado, Senhora Presidente. Vês? Diz-me o novo tipo. O poder é um facto.
Ao fim de duas horas, temos direito a um intervalo de dez minutos e como o acto não pode parar, temos sempre um substituto que nos reveza nesses momentos. Sem perceber muito bem como, lá estou na rua a apanhar ar quando o novo tipo se abeira de mim com aquele ar cínico e me pede um cigarro, Não fumo. Respondo-lhe eu. Pena. Devolve ele. Preciso de um cigarro, vou cravar um à Gorda. Avança com as mãos a segurar as abas do casaco de malha até à Presidente, diz-lhe qualquer coisa e ela rindo-se oferece-lhe um cigarro daqueles muito fininhos e brancos. Não trocam mais palavras e o tipo volta para o meu lado. Conseguiste? Sim. Instala-se o típico silêncio do não sei bem o que dizer mas lembro-me de algo conciliador, Ela é amigável. Ele olha para mim, encolhe-se com o frio, sorri e só diz, Somos do mesmo partido.