BookTok e a literatura fast food
Nunca se falou tanto de livros como agora que “trendam” na internet. Nas livrarias, existem mesas inteiras dedicadas ao fenómeno do BookTok, a comunidade do TikTok que, em vídeos de poucos segundos, transforma títulos em best-sellers mundiais. É um dos maiores fenómenos editoriais das últimas décadas: obras desconhecidas disparam para o topo das listas, autores anónimos ganham fama instantânea, e jovens que raramente pegavam num livro passam a exibir bibliotecas improvisadas nas estantes de casa. Para o mercado editorial, este boom é uma mina de ouro; para a cultura, uma oportunidade inegável de voltar a colocar a leitura no centro da vida quotidiana.
Mas o que estamos, afinal, a ler? E a que preço?
O mérito do BookTok é inegável: trouxe os leitores jovens de volta, o que naturalmente importa. Porém, também importa analisar de que modo este regresso acontece. O algoritmo privilegia histórias que se adaptam à lógica do viral: narrativas fáceis, romances lineares, personagens unidimensionais, mas que em poucas páginas conquistam “empatia”. É uma literatura concebida para ser consumida com a mesma rapidez com que se troca de vídeo no ecrã — simples, previsível, imediata.
Não se trata de desprezar quem lê estes livros, nem de negar que há espaço para a leveza e para a evasão. Todos precisamos de leituras que aliviem os dias. O problema surge quando o fast food literário se torna a dieta principal. Como acontece com a comida rápida, a satisfação é instantânea, mas raramente nutritiva. As personagens unidimensionais, os enredos repetidos e os finais óbvios deixam o leitor sempre no mesmo lugar: entretido, mas não propriamente transformado.
E é precisamente aí que reside a essência da literatura: desafiar-nos, obrigar-nos a pensar, incomodar-nos. Obras como Anna Karenina, A Sibila ou A Montanha Mágica não nos oferecem conforto imediato. Pelo contrário, exigem paciência, reflexão, convivência com a dúvida. Pedem-nos que aceitemos o desconforto, a contradição e a densidade humana. E, ao fazê-lo, expandem a nossa visão do mundo e de nós próprios, tornam-nos capazes de questionar.
Quando o algoritmo substitui o cânone, corre-se o risco de perdermos a diversidade e a profundidade que sempre fizeram da literatura uma arte transformadora. O BookTok criou uma montra global que repete fórmulas, ditando modas passageiras onde quase todos os leitores consomem os mesmos cinco títulos. Este efeito de uniformização empobrece o imaginário coletivo e mina a possibilidade de encontrar vozes singulares, complexas e exigentes.
A cultura literária, outrora sustentada pela pluralidade de estilos e pela convivência entre a exigência e o entretenimento, vive hoje sob a opressão do conteúdo viral. Já não é a complexidade da obra que determina a sua relevância, mas sim a capacidade de gerar identificação imediata e partilhas em massa. Um livro passa a ser “bom” se emociona rápido, se é “empático o suficiente”, se se encaixa num molde padronizado de personagens e dilemas universais que cabem em trinta segundos de vídeo. Essa filtragem algorítmica do que merece atenção ameaça descaracterizar o poder da literatura: o de nos confrontar com o estranho, com o incómodo, com aquilo que não se explica nem se resolve num só parágrafo.
Há ainda uma consequência mais subtil: a erosão da crítica literária. Se antes a mediação entre autores e leitores passava por críticos, revistas e suplementos culturais, hoje são os vídeos de 30 segundos que decidem o destino de um livro. A avaliação dá lugar ao entusiasmo momentâneo, a leitura profunda é trocada pela recomendação viral. O risco é óbvio: a literatura transforma-se em produto de uma moda volátil.
As editoras, conscientes do poder do algoritmo, já moldam catálogos inteiros a pensar em tendências virais. Capas semelhantes, histórias fáceis de traduzir para resumos visuais, protagonistas que cabem na estética da partilha digital. A lógica de mercado é compreensível, mas levanta a pergunta essencial: que espaço sobra para a ousadia literária, para a escrita que não se adapta à lógica do que é viral, mas que resiste e desafia?
O BookTok tem os seus méritos e deve ser celebrado por ter devolvido a leitura a uma geração mais jovem. Mas não podemos deixar que esse regresso seja construído apenas sobre fórmulas previsíveis. Ler é mais do que entreter-se; é uma forma de educar o olhar, de treinar o pensamento crítico, de confrontar perceções. Se aceitarmos apenas a literatura fácil, abdicamos do verdadeiro poder que os livros sempre tiveram: fazer-nos pensar.
A tentação do imediato é grande. O mundo pede velocidade, e os livros do BookTok respondem a essa exigência com eficiência. Mas talvez seja hora de reivindicar outro ritmo. De resgatar a obra literária que não cabe em resumos, da narrativa que desafia mais do que consola. Ler não deve ser apenas reduzido a um ato de consumo, mas reconhecido como um verdadeiro exercício de liberdade.
Em última análise, a questão não é escolher entre o clássico e o viral, entre Tolstói e o livro da moda. A questão é não nos contentarmos apenas com o fast food literário. Tal como numa alimentação equilibrada, há espaço para a leveza e para o rigor, para o prazer imediato e para a densidade. Mas é na convivência com a complexidade, — e não na sua ausência —, que a literatura cumpre a sua promessa de ampliar horizontes.
BookTok trouxe-nos de volta aos livros. Cabe-nos agora não esquecer o que os livros sempre foram: janelas para mundos que não se explicam em trinta segundos, nem se esgotam num enredo óbvio.

