Boris Vian, o ‘faz-tudo’ artístico francês
Boris Vian fez de tudo um pouco: escreveu (com um pseudónimo e sem ele), cantou, representou, tocou, concebeu, criou, criticou. Em suma, foi a aceção plena e concretizada daquilo que é um artista multifacetado. A arte consagrou-se neste gaulês de uma forma completa e robusta e conheceu uma harmonia especial em conjunto com os músicos de jazz e seus instrumentos. Contribuindo para a valorização do género no seu país, os 39 anos que viveu foram parcos para manifestar todo o expoente artístico de um polímata que se descobriu de diferentes formas. É esta premissa que habita num inconsciente iluminado e que se mantém incandescente através da arte e do expoente da existência.
Boris Paul Vian nasceu a 10 de março de 1920 no seio de uma família de classe média-alta no subúrbio parisiense de Ville d’Avray. Foi da parte da sua mãe, pianista e harpista amadora, que colheu a paixão pelas artes. Aliás, o nome de Boris foi escolhido por ela com base numa ópera do compositor russo Modest Mussorgsky, de título “Boris Godunov“. Por via de uma saúde frágil, o pequeno Boris, segundo de quatro filhos do casal Vian, estudou em casa até aos cinco anos, ingressando nessa fase no Lycée de Sèvres. Após a situação financeira da família piorar com o Crash de Wall Street, no ano de 1929, e de terem arrendado a sua propriedade à família do músico Yehudi Menuhin, a saúde de Vian voltou a deteriorar-se com uma febre reumática e com tifóide. Todos estes problemas viriam a contribuir para futuras conturbações cardíacas, as mesmas que viriam a levá-lo a uma morte precoce. Estas foram expressas no seu romance “L’Écume des Jours” (1947), conto escrito à boa maneira surrealista e que envolve as histórias de dois casais, um dos quais envolve uma mulher que possui uma doença rara num pulmão, e onde os objetos mensuráveis respondem às emoções imensuráveis.
Nos anos 30, e estando o pequeno Boris a estudar em Versalhes, começou a realizar com dois dos seus irmãos festas-surpresa. As festas, nas quais estavam envolvidas a boémia e a mescalina na forma de cactos mexicanos (os “peyotes”), foram inspiração para algumas obras literárias do gaulês, tais como “Trouble dans les andains” (publicado postumamente em 1966) e especialmente “Vercoquin et le plancton” (1946). Foi também nestes tempos que o seu prazer pelo jazz cresceu, aprendendo a tocar o trompete e juntando-se ao Hot Club de France, organização francesa desse género musical. Envolvendo-se a fundo na dinâmica francesa do jazz, tornou-se responsável por trazer o pianista Duke Ellington ao país gaulês em 1939. Com 17 anos, Vian dominava o latim, o grego e o alemão, para além de ter estudado Matemática e Filosofia no liceu; levou a matemática avante no Lycée Condorcet, onde estudou durante dois anos Matemáticas Especiais. No entanto, foi pouco depois que a Segunda Guerra Mundial eclodiu, com o artista a não ser aceite no exército devido à sua saúde vulnerável. Os seus estudos acompanharam a mudança logística da sua universidade (École Centrale des Arts et Manufactures) de Paris para Angoulême, mais a ocidente.
No plano pessoal, o francês conheceu a sua esposa Michelle Léglise em 1940, que o ajudou a aprender Inglês e a desvendar a Literatura norte-americana; também travou contacto com Jacques Loustalot, que viria a ser o “coronel” de alguns dos seus pequenos contos e romances e uma das muitas personagens que conheceu e que foram adaptadas à sua literatura. 1942 foi um ano importante para a sua estabilidade e para a sua felicidade, licenciando-se em Metalurgia, juntando-se com os seus irmãos à orquestra de jazz de Claude Abbadie e tendo o seu filho Patrick nascido.
De volta a Paris, e com família construída, Vian encontrou o seu sustento profissional na Associação Francesa para a Estandardização (AFNOR) como engenheiro, satirizando o seu trabalho precisamente em “Vercoquin et le Plancton”. Os primeiros romances da sua autoria começaram a ser escritos nos seus tempos livres e a sua vida musical tornou-se cada vez mais valorizada, tornando-se mais conhecido numa amplitude nacional como trompetista de sucesso. O seu ímpeto para a escrita nasceu com a paixão artística pela música e pelo jazz e o seu primeiro poema foi publicado num boletim do Hot Club de France sob o pseudónimo “Bison Ravi“, anagrama do seu nome e que significa “Bison maravilhado”. Porém, esse ano viria a contemplá-lo com mais uma agrura, tendo o seu pai morrido por mãos de assaltantes.
O apoio dado pelos seus amigos, nomeadamente pelo autor Raymond Queneau e pelo filósofo Jean Rostand, foi crucial para avançar com a publicação do livro acima mencionado nas Éditions Gallimard, tornando-se numa das obras de destaque da sua carreira. Nesse registo literário, notabilizam-se tanto “L’Écume des Jours” como “L’automne à Pékin” (1947), ambas com características proeminentemente surrealistas. Contudo, o lucro provindo destes dois livros foi baixo por não terem conseguido captar as atenções do público, tratando-se de dois romances de interpretação mais ou menos complexa. Desapontado com estes insucessos, Vian ganhou ainda mais voracidade pela escrita e redigiu no mesmo ano “J’irai cracher sur vos tombes” em apenas duas semanas. Este romance passa-se no sul dos Estados Unidos e explora os conflitos raciais e sexuais habituais dessa região do país a partir do desejo de vingança de um indivíduo, cujo irmão foi morto numa comunidade segregacionista. A principal particularidade que este romance trouxe foi o uso do pseudónimo Vernon Sullivan, tendo Vian ressalvado na introdução da obra que era o tradutor desse emergente escritor de origem norte-americana, que parodiava a ficção criminal desse tempo. Este mistério que circundou este putativo autor foi desmistificado rapidamente e o livro tornou-se num dos mais vendidos do ano. Vernon Sullivan voltaria às estantes com mais três romances, datados entre 1947 e 1949.
Ainda em 1946, Boris Vian permaneceu com a tradição festiva que sempre dominou a sua vida, desta vez ao lado da sua esposa Michelle. Nesses eventos, conheceu os notórios filósofos Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus, e tornou-se numa presença regular nos seus círculos de literatura. A admiração que Vian nutria por Sartre (“Jean-Sol Partre” foi uma personagem na obra “L’Écume des Jours”) foi destruída no momento em que o filósofo francês iniciou uma relação com a mulher do artista.
Mesmo com a literatura em crescendo na sua vida, Vian nunca prescindiu da sua paixão “jazzística”, colaborando em revistas da especialidade e atuando no clube Le Tabou com o seu trompete. Apesar das dissidências da sua vida pessoal, o desafogo financeiro permitiu-lhe sair da AFNOR e fundar o seu próprio coro, de nome “La petite chorale de Saint-Germain-des-Pieds“. A poesia da sua autoria foi reunida pelo próprio autor e lançada em duas diferentes coleções em “Barnum’s Digest” (1948) e “Cantilènes en gelée” (1949); e a dramaturgia também foi experimentada em “L’Équarrissage pour tous” (1950), numa sátira à guerra e aos ideais e valores nacionais e internacionais americanos. Também esse ano viu Vian lançar o seu terceiro grande romance, sendo este “L’Herbe rouge“, uma obra mais fechada e sinistra na qual um homem construiu uma máquina que o ajudaria a psicanalisar a sua própria alma. De novo, os proveitos monetários que esta apresentou foram parcos e acompanharam o decréscimo da estabilidade financeira. Assim, viu-se obrigado a traduzir obras de língua inglesa e artigos de variadas origens.
A separação de Michelle viria a ser sucedida por um novo matrimónio com uma dançarina suíça chamada Ursula Kübler. A última grande tentativa de Vian vingar na literatura com os seus romances, publicando “L’Arrache-coeur” em 1953, em que a psicanálise volta à tona, e que se debate sobre uma cidade na qual existem diversos casos absurdos de estudo. Perante novo falhanço, o francês passou a redigir letras musicais e continuou nas suas investidas líricas, visualizando algum sucesso nesse campo. Na verdade, a música sempre foi o caminho que cruzou a sua paixão com a realização profissional. Diretor artístico da Philips em 1955, Vian estava envolvido na redação de argumentos, de música, de peças e até de óperas. Pelo meio, gravou um álbum, “Chansons possibles et impossibles“, e escreveu músicas, tanto para o músico de rock n’ roll e seu amigo Henri Salvador, como para a inglesa Petula Clark (para esta, a música “Java Pour Petula“).
Pouco tempo depois, o próprio Boris Vian sentiu-se tentado a cantar em pleno palco, convertendo as letras que escrevia em fonemas e melodias a ecoar a partir do seu coração. Vendo Marcel Moulodji recusar-se a cantar “Le Deserteur” (de teor anti-bélico) por receio de esta ser banida, o artista sentiu o seu impulso artístico constrangido e não veria as suas músicas entoadas por si mesmo a arrecadarem sucesso. Estas conquistariam as televisões e rádios nos anos 70, somando uma fama póstuma nos mais diversos canais culturais nos anos que se seguiriam à sua partida do mundo material.
A sua vida tornar-se-ia cada vez mais complicada a partir do momento em que sofreu um edema pulmonar em 1956. Mesmo trabalhando afincadamente, organizando mais uma série de obras, incluindo a peça “Les Bâtisseurs d’empire“, publicada somente em 1959; a ópera “Fiesta“, ao lado do compositor Darius Milhaud; e uma coleção de ensaios. Na manhã de 23 de junho de 1959, Boris Vian mostrou o seu descontentamento com a adaptação cinematográfica da sua obra “J’irai cracher sur vos tombes” em pleno Cinema Marbeuf e, durante o visionamento do filme, colapsou e morreu a caminho do hospital numa morte súbita devido à condição cardíaca que tinha. Foram somente 39 anos aqueles que viveu, mas muito deixou como legado da sua atividade que se revela vitalícia.
Boris Vian fez de tudo, mesmo não reunindo a consagração em tudo aquilo que fez. Na literatura, o mistério que Vernon Sullivan gerou foi motivo de sucesso, mas foi escasso, tendo em conta o seu vasto repertório. Só de forma póstuma é que a sua obra literária por inteiro conheceu a notoriedade desejada, inspirando as gerações juvenis dos anos 60 e 70. Na música, e mesmo tornando-se num trompetista bem sucedido e tendo sido providencial na presença dos artistas de jazz Miles Davis e Hoagy Charmichael em França, viu as suas letras serem utilizadas por músicos compatriotas como Léo Ferré e Georges Brassens, e inspirar nomes como Serge Gainsbourg. Apesar de alguma relutância na sua fama como cantor, a geração de maio de 1968 sentiu-se inspirada e acalentada pelas mensagens impertinentes e resistentes. O seu génio artístico complementou-se com a sua atividade em diferentes ramos culturais, imbuindo-se no Surrealismo e num fulcro de criação semântica que transportou essa vibração em ebulição. Com uma plenitude subtil nas suas experiências pessoais e profissionais, Boris Vian conheceu de tudo e de tudo isso fez um todo de se admirar e de se contemplar.