Breves notas sobre a eutanásia
1. Sim, nas democracias representativas os membros do Parlamento têm poder para discutir e decidir sobre assuntos, incluindo aqueles que não faziam parte dos programas eleitorais dos partidos que lá estão representados.
2. A iniciativa de levar a eutanásia a referendo não é mais que uma arma política para tentar chumbar uma medida que, muito provavelmente, será aprovada pelo Parlamento. Não creio que seja para isso que servem os referendos, embora não seja essa a tradição.
3. O tema é complexo, tem razões válidas de ambos os lados, e merece um debate que respeite essa complexidade. Se já é difícil fazê-lo assim, consigo imaginar o que será numa campanha eleitoral em tempos de polarização política e ideológica e de radicalismos de linguagem. Dispenso.
4. Neste como em tantos outros assuntos, parece difícil recolher opiniões aceitáveis, tanto de um lado como do outro, sem radicalismo ou rejeição do pensamento do outro. Há argumentos válidos em todos os lados e era importante que eles fossem expostos com a capacidade de ouvir o outro e, sobretudo, com a certeza de que estamos a falar de um assunto especialmente sensível, que nos pode afectar a todos, e que o sofrimento humano não se resolve nem com respostas fáceis nem com conceitos vagos que às pessoas que estão ou podem vir a estar em sofrimento dizem pouco, como o “direito à vida”.
5. A questão da eutanásia traz sempre muita discussão e muita confusão de conceitos. Talvez seja importante começar por explicar que o testamento vital já existe e que também já é possível satisfazer o desejo da maioria das pessoas que defende a eutanásia, que se traduz na frase “se eu estiver muito mal, não quero ficar ligado a uma máquina, quero que a desliguem”.
6. O que está em causa é explicado pelo eufemismo “suicídio assistido” que, na prática, é homicídio, uma vez que, sendo o suicídio um acto pessoal, não envolve a participação de terceiros.
7. Eu compreendo o ponto de vista de quem defende que quem sofre de lesão definitiva ou doença incurável e fatal possa tomar a decisão de forma consciente e expressa, de manifestar vontade atual, livre, séria e esclarecida de pedir a um medico que o mate para terminar com o sofrimento.
8. Mas não sei se quem tem uma doença incurável fatal e esteja em sofrimento duradouro e insuportável está em condições de tomar uma decisão livre, séria e esclarecida sobre a sua própria vida, sobretudo quando não pode dispôr dela sozinho e carece do auxílio de terceiros. Tenho muitas dúvidas sobre a liberdade de um acto deste género.
9. Sendo que é a própria participação de um terceiro no processo da morte que nega a existência de liberdade no mesmo.
10. Num país em que a grande maioria das pessoas não tem acesso a cuidados paliativos e continuados, nem dinheiro para os pagar, duvido também da igualdade do “suicídio assistido”. Não me custa imaginar que, aberta essa possibilidade, serão os mais pobres a recorrer à eutanásia. E isso preocupa-me.
11. Por outro lado, é inacreditável que só quando se lança a eutanásia para o debate público é que se fala de cuidados paliativos, sem que depois se tomem medidas para os alargar à população que mais deles precisa. Se bem se lembram, desde a última votação parlamentar sobre este assunto que a expressão “cuidados paliativos” desapareceu do espaço público. É natural que as pessoas, imaginando-se um dia em situação de sofrimento extremo, prefiram pedir a um médico que as matem. É mais rápido e menos doloroso do que passar o tempo de duas ou três gerações à espera de cuidados médicos adequados ao seu estado de saúde.
12. As cada vez menos certezas que tenho na vida fazem-me acreditar que, tudo ponderado, serei pelo “não”. É um não sobretudo assente em dúvidas e em receio de que tudo seja alterado para pior. Cá estarei para reconhecer o meu erro caso as minhas dúvidas não tenham fundamento. Até lá, fico disponível para ouvir argumentos melhores que as minhas dúvidas.
Texto inicialmente escrito por Nuno Gonçalo Poças na sua página de Facebook.
Nuno Gonçalo Poças tem 34 anos, é marido, pai de duas filhas, cozinheiro bastante razoável, advogado, antigo assessor governamental, ex-blogger, escreve sobre o sistema politico e justiça no Observador e sobre tudo o que mais lhe interessar onde calhar. Colaborou com Eduardo Paz Ferreira no livro “Troika Ano II” com o artigo “A Liberdade não está a passar por aqui” e produziu conteúdos jurídicos para o livro “O Inimigo em Casa – Dar Voz aos Silêncios da Violência Doméstica”. É definitivamente radicalmente moderado, depois de já ter sido moderadamente radical.