Brevíssimo tratado da alegria
Para quem se compraz com o familiar, como este vosso criado, a vida no bairro tem corrido a uma velocidade vertiginosa e inalcançável. Conto: primeiro foi a partida da menina Marina, a sábia que tantas vezes protagonizou estas crónicas. Foi substituída no seu posto por uma jovem rapariga. Mas com o regresso da época lectiva a adolescente foi fazer o que fazem os adolescentes. No seu lugar está agora uma mulher competente e de extrema simpatia, oriunda da China e com o mais extraordinário nome: Nasa (juro). Alguma da clientela habitual deste retiro não consegue impedir o trocadilho inofensivo: “Vou pedir um café à Nasa” ou “Será que a Nasa sabe fazer abatanados” são apenas dois exemplos. Toda a gente sorri e ninguém leva a mal, a começar pela própria.
A simpática Nasa está numa fase de aprendizagem, conhecendo devagar as manias dos clientes, os temas de conversa, os caprichos de alguns pedidos. E ainda tropeça na nossa língua. Um desses tropeções aconteceu comigo e levou-me mais longe do que esperaria. A estas palavras, por exemplo. Disse-me ela, vendo-me trocar graçolas com o dono do estabelecimento: “O senhor Nuno hoje é alegre”. Queria naturalmente dizer “está alegre”. Mas o engano revelou-lhe a linda (e incompreensível para estrangeiros) bifurcação ontológica entre o verbo “ser” e o verbo “estar”. Quando isso se conjuga com a palavra “alegre” e me diz respeito dá-me logo que pensar e escrever.
Bicho estranho, esse da alegria. Não se trata de ser feliz, não se trata de ter sentido de humor. Não é um riso sobre o mundo – é estar contente com ele, nem que seja por indesejados instantes. A língua portuguesa ainda complica a coisa de forma maravilhosa: somos alegres ou estamos alegres ou ambos?
«Não há ninguém capaz de me dar alegria», dizia um esplêndido refrão dos Heróis do Mar. Mas aqui a alegria é antónimo de tristeza e isso não chega nem serve e nem sequer é verdade. O que é ser alegre, estado existencial que confesso não conheço nem em mim nem aos que me rodeiam?
Apenas o estar alegre: um desprezo temporário das agruras da vida, um estar em casa com o que os dias têm para oferecer. Não se trata de felicidade ou de “ser feliz”: todos sabemos que ninguém com alguma vida e sensatez pode ousar dizer que é ou foi feliz. É uma utopia eufórica que normalmente se confunde com um momento. Não quer dizer que não se possa almejar a esse castelo de areia. Mas é difícil levar a coisa a sério. Por exemplo, se eu disser que tive uma infância “feliz” quero dizer que fui protegido, porque tive sorte e pais dedicados, das desgraças que me poderiam ter atingido. Mas o crescimento trouxe várias angústias e momentos de extrema solidão, como aliás penso que acontece a toda a gente que partilhou a mesma condição. Ou seja: apesar de tudo houve momentos de infelicidade, de dúvida, de tristeza.
Mas divago, como de costume. O leitor é paciente e compreende. E mais entenderia se alguém se apresentasse, como me aconteceu variadas vezes, como uma “pessoa alegre”. O que diabo isto quer dizer? Eu respondo: é o sinal para fugir a sete pés. Se alguém acredita que a vida é a sua sala de estar, que está sempre com um sorriso ou disposição luminosa está a mentir. Ou pior, está nas bermas da vida ou da inimputabilidade ou ambas.
Há um episódio verídico que o humorista Ricardo Araújo Pereira costuma dar como exemplo. Trata-se de um homem deprimido e descontente com o mundo que procura a ajuda de um psiquiatra. O clínico ouve-o, regista a sua tristeza e aconselha: “Deveria ir assistir ao espectáculo do famoso palhaço Grimaldi. É de uma alegria extraordinária. Isso ajudá-lo-ia”. A resposta do paciente é famosa: “Mas doutor, eu sou Grimaldi”.
A alegria é um estado transitório como todos, a começar pela própria vida. O que mais se pode aspirar é ser Grimaldi de quando em vez. Perguntem à Nasa.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.