‘Broad City’, muito mais que uma comédia ‘stoner’
Após um ano e meio de espera sofrida, e após ter sido adiada um mês, Broad City está de regresso à televisão americana no dia 13 de Setembro. Ainda que nesse período tempo tenhamos continuado a ser afortunados com os “Hack into Broad City” (curtos sketches referentes ao período de tempo em que são lançados – 4/20, inauguração do Trump ou Yom Kippur, por exemplo – em que as duas protagonistas, casualmente, abordam a questão via Skype ou Facetime), foi na ComiCon de São Diego que as comediantes apresentaram não só dois episódios da temporada que se aproxima, como também revelaram alguns detalhes e curiosidades sobre os temas, convidados e o lugar em que as personagens se encontram no recomeço da serie.
Elucidando: Broad City é uma sitcom da Comedy Central, criada e protagonizada por Abbi Jacobson e Ilana Glazer, que segue a vida das duas jovens – Abbi Abrams e Ilana Wexler, na série – em Nova Iorque, enquanto partilham com a audiência a sua vida, por entre uma enorme quantidade de charros fumados, empregos desgraçados e relações enviesadas. Tendo começado o projeto enquanto webseries, a transição para a televisão deu-se quando os pequenos vídeos publicados no Youtube chamaram à atenção de Amy Poehler – porque a Leslie Knope traz sempre boas novas consigo –, que se tornou produtora executiva da série. Dita transição não fez com que o conteúdo perdesse a sua essência, aliás, permitiu a Glazer e Jacobson transpor num setting mais realista, com mais coerência e tempo de duração, a sua ideia inicial: criar uma versão exagerada das suas vidas em Nova Iorque, quando eram ambiciosas jovens à procura de si próprias no pós-universidade. O meio em que se apresentam visa então refletir essa fase da sua vida e, quase todos os episódios, de uma maneira ou outra, revolvem em torno de histórias que lhes aconteceram efetivamente. Wexler inicia a serie empregada na Deals Deals Deals, uma empresa de promoções do género da Groupon, a exercer um trabalho que absolutamente despreza, sob a chefia de alguém que não respeita, e Abrams é empregada de limpeza no Soulstice, um ginásio de alta qualidade e estatuto – à semelhança do Virgin Active em Portugal, ou do Equinox na América –, em que está sob constante pressão para ir resolver as “pube situations” que acontecem nas casas de banho. Ambas Glazer e Jacobson trabalharam de facto numa empresa na qual se inspiraram para a Deals Deals Deals, e Jacobson, ainda que não tenha andado a limpar pubes alheios no Equinox, trabalhou para eles a distribuir panfletos.
Elementos que ajudam a articular e fazer concretizar a premissa da serie residem no elenco secundário. Hannibal Buress enquanto Lincoln, Paul W. Downs como Trey (“*gasp*Kirk Steele”) e Arturo Castro encarnando Jaime, brilham nos seus respetivos papéis: o descontraído dentista “namorado” da Ilana, o ingénuo personal trainer patrão da Abbi, e o colega de casa emigrante da Ilana. Fazem-no contribuindo sempre para a narrativa e para a composição da piada em que se inserem, solidificando e credibilizando da existência das protagonistas no seu universo, sem nunca exagerar ou roubar o spotlight.
Uma conceção algo redutora acerca da série vem na sua comum classificação enquanto stoner comedy. Sim, muito se fuma nos episódios, muito inventivas se tornam as formas de consumir marijuana – um batido de firecrackers a certo ponto, para combater uma Abbi combalida depois da remoção de um siso, ou um “ginger blunt man” para acalmar o nervosismo de Ilana – e muito relaxadas conseguem ser as personagens. Mas isto é só um fator complementar para a descrição da vivência que está a tentar ser transmitida, e que, apesar da sua persistência, exerce um papel, mesmo que cómico (em muito graças à excelente edição dos episódios), talvez menos relevante para a progressão da série do que a piada recorrente de que o vestido azul que Abbi compra no episódio “Fattest Asses” da primeira temporada para ir a uma festa snobe, ser o vestido que usa sempre que, ao longo das três temporadas, há uma qualquer ocasião especial. É algo que acontece na série sem nunca ser endereçado, porque é algo que toda a gente faz nas suas vidas: repetir roupas caras que só se compram com esse propósito único.
O foco principal está então na relação interpessoal entre as duas jovens e a maneira realista com que essa amizade é retratada – o que foge à convenção daquilo que são as amizades, especialmente femininas, quando representadas nos média –, e na relação com a cidade.
A abertura e descontração com que a Abbi e a Ilana interagem, a inexistência de coibições ou pruridos nos assuntos de que abordam – repare-se a naturalidade com que o tema de pegging é introduzido –, e a bruta frontalidade e falta de floreados é algo que nos dias que correm ainda falha em ser demonstrado nas sitcoms, basta olharmos para Friends, How I Met Your Mother, Unbreakable Kimmy Schmidt ou (e até custa dizer, porque criticar esta série é blasfémia) Parks and Recreation. A conversa entre as personagens femininas – e masculinas, em muitos dos casos supracitados – nunca vai para além do nível de conforto das personagens, nem da audiência. E se It’s Always Sunny in Philadelphia já há uma década que quebrou esse taboo para amizades masculinas, porque demorou tanto tempo a surgir uma comédia que representasse realisticamente o mesmo para as mulheres? É neste âmbito que Broad City consegue triunfar e destacar-se por estar a acompanhar, e até instigar, uma mudança de mentalidade tanto no consumidor de entretenimento televisivo, como nas produtoras e canais que, com o sucesso da série, espera-se que comecem a investir em projetos mais progressistas e menos repetitivos – porque, sejamos sinceros, How I Met Your Mother foi uma repetição de Friends, New Girl é uma repetição de How I Met Your Mother e por aí adiante, com a falta de criatividade e inovação e financiamento de conteúdo seguro, que não arrisca.
Também o feminismo não pode deixar de ser mencionado. Essa procura por reinvenção está naturalmente de mão dada com o fortalecimento da voz feminina e a cada vez mais visível luta pela igualdade de géneros (ainda que 2016 tenha sido um ano de passos atrás politicamente…), e faz-se sentir na série seja pelos papeis desempenhados por Glazer e Jacobson, seja pelos convidados especiais em alguns dos episódios. Por exemplo, na terceira temporada, a empresa em que a Ilana trabalha está em vias de encerrar por falta de financiamento; é introduzida então uma personagem, uma investidora, para ajudar a revitalizar a companhia. Esta introdução, podendo à primeira vista parecer irrelevante, reitera a mensagem de Broad City, pois a investidora – Vanessa Williams, que, para quem ainda se lembra, deu vida a Wilhelmina Slater, em Ugly Betty – aparece em contraste a Todd, o submissivo e em-constante-procura-de-aprovação patrão da Ilana. A ironia é também uma ferramenta utilizada a modos de “abre-olhos” para as discrepâncias de género que ainda existem, e infelizmente continuarão a existir por muitos anos, na sociedade – Ilana, quando tenta convencer Lincoln a persuadir o seu novo interesse romântico a ter uma ménage com eles, obtém a resposta de que não se deve enganar nem convencer ninguém a situações dessas, o que a leva a espantadamente declarar “wow I’ve heard so many women saying that, but when you say it, I really hear it.”. A subtileza da inserção de comentário e critica social – não só no que toca ao género, mas também a raça e orientação sexual –, e o “não reconhecimento” desses momentos durante os episódios – passa tudo under the radar -, está também na base da razão de Broad City ser uma comédia com uma visão longe de limitante, e que funciona com uma geração nova na luta pelo progresso (o que não aconteceu com Arrested Development, que, sendo uma das melhores sitcoms de sempre, foi cancelada ao fim de três temporadas, por ser ahead of its time, e volta agora em que um tipo de humor menos seguro está a emergir no meio mais mainstream).
No que toca à cidade, Nova Iorque é claramente a terceira protagonista da série. A Abbi mora em Queens e a Ilana em Brooklyn, e a maioria das cenas exteriores decorre entre esses dois bairros; a distância é grande e há espaço para explorar tanto a ineficiência dos comboios e metros como a gentrificação que esses bairros típicos e problemáticos têm vindo a sofrer. “Damn, this neighbourhood is changing!” diz Ilana quando se depara com a abertura de um Whole Foods, cadeia de supermercados orgânica onde a juventude hip gosta de ir, em Gowanus, área de Brooklyn que era outrora muito industrializada e com problemas de tratamento de esgotos. Também são satirizadas constantemente tendências que assolam a cidade, como a fixação com o brunch ou as enormes filas que se estendem por longos quarteirões para experimentar um novo donut todo XPTO, a contrafação de malas em Canal Street (num episodio em que também somos surpreendidos pela sabedoria da Ilana acerca da quantidade de vida animal que a água da torneira nova iorquina sustenta), a loucura de St. Mark’s Place ou ainda o ódio que os moradores têm a Times Square e a Penn Station. A comédia física e situacional que surge naturalmente com estes momentos, dificilmente seria replicada noutra cidade, já que as várias faces e multiculturalidade da Big Apple conferem espaço para a reprodução de situações em toda a gama do espetro, que na maioria dos sítios não faria grande sentido. Os episódios permitem-nos navegar por Nova Iorque, mesmo que nunca lá tenhamos estado, o que dá mais uma dimensão à serie; a frase que melhor o traduz é o comentário eufórico e motivado que a Ilana faz quando descreve o seu caminho para casa “I’ll hop on the Q18, catch the N and then transfer to the R and get home in a tight 95 ’cause the G ain’t runnin’!”.
Ao longo das três temporadas uma coisa é certa: podemos observar uma evolução, tanto nas personagens como na construção e realização da série em si. Se a primeira temporada é a que mais se aproxima à webserie, na mudança para a segunda vemos um claro aumento da produção e investimento, que é ainda maior da segunda para a terceira (e pelo trailer, convidados, e mudança para horário nobre da quarta temporada, continua a aumentar visivelmente), o que demonstra que há um contínuo interesse do público, e que este está em constante crescimento. Isto é possível porque, ainda que a historia não tenha nada de especial – são duas amigas em Nova Iorque, a fumar umas ganzas e tentar fazer um tostão – cresce com as personagens, que em nada são estáticas; há uma procura de um lado e outro para se contrabalançarem, uma Abbi insegura tenta acalmar uma Ilana narcisista e cabeça-de-vento que vive em luta constante para aumentar a confiança da amiga. E na terceira temporada somos presenteados com um conflito transversal a todos os episódios, o que nunca havia acontecido, mas em vez de ser dramatizado como em tantas – demasiadas – séries acontece, é resolvido com resiliência e racionalidade.
Tendo instantaneamente graça e, mesmo quando à primeira pode parecer não ter grande conteúdo, Broad City é uma série com um mundo de piadas que vai bem para além do riso imediato; uma segunda visualização permite-nos aceder e compreender piadas que não apanhámos na primeira vez e, quantas mais vezes virmos, mais easter eggs descobrimos (mas esses não se spoilam, que fiquem guardados só para os fãs verdadeiros). É uma serie que esperemos que represente o futuro da comédia televisiva e que combata a dormência e humor fácil que atraem a maioria do público consumidor de televisão; porque a comédia é também um veículo para estimular o intelecto, não o devemos desperdiçar.
Broad City volta a 13 de Setembro e consigo traz a história da origem (como se conheceram as protagonistas), uma trip alucinogénica com cogumelos (em que Mike Perry, o animador dos créditos iniciais, tem uma mão fundamental), e a censura do nome de Donald Trump (ouvir-se-à um beep sempre que o presidente americano for nomeado). A ânsia mal se contem, mas até lá revemos as outras três temporadas. Yas Queen.