Bronzino em Florença
O fim de Julho aproxima-se e depois começam as férias. E este ano, as nossas férias vão, de facto, acontecer (o que não foi possível desde que nos casámos, por causa do projecto de tradução da Bíblia). E a sua concretização trará à minha vida a realização de dois sonhos que dominam há décadas a minha imaginação. É que, este Verão, o André e eu vamos a Florença e a Veneza – cidades onde ele já viveu e estudou, mas onde, para minha tristeza e vergonha, eu nunca fui.
No entanto, são cidades que conheço bem na minha cabeça, porque a sua arte (arquitectura, pintura, escultura) e a sua história me fascinam desde a minha adolescência. Veneza é, ainda, para mim uma pátria musical: é a cidade de Gabrieli e a cidade onde está enterrado Monteverdi, dois deuses absolutos do meu Panteão. E Florença não é mais nem menos do que a cidade que deu ao mundo a forma artística cujo repertório rivalizou e tantas vezes superou o teatro grego: a ópera.
Florença também deu outra coisa ao mundo que me apaixona e que me define: o ensino do Grego. Foi em Florença, entre 1360 e 1362, que foi feita a primeira tradução de Homero (para latim, no caso). E foi a cidade de Florença que, no final do século XIV, contratou o bizantino Manuel Chrysoloras como primeiro professor de Grego no mundo ocidental, depois de quase um milénio em que o ensino do Grego ficara esquecido.
Florença é a cidade de grandes génios cujos nomes todos conhecemos (começando logo por Dante). Mas é também a cidade de génios menos famosos do que esses. Entre esses génios por vezes considerados de segunda divisão, existe um que faz parte da minha consciência desde sempre, pelo facto de, na sala dos meus avós maternos, ter havido na minha infância reproduções emolduradas em miniatura de alguns quadros seus, sendo aquele que mais impressão me causou foi o de Lucrezia Panciaticchi, que está nos Uffizi e que espero ver finalmente ao vivo daqui a umas semanas.
Estou a falar de Bronzino, pintor fascinante, autor do fresco cuja imagem acompanha este texto: a «Travessia do Mar Vermelho», que está no Palazzo Vecchio de Florença. Trata-se de uma composição pictórica que, bem à maneira de Bronzino, tem vários níveis de sentido. Também nos seus poemas – pois Bronzino era poeta, além de pintor – esses segundos sentidos estão presentes através do uso de gírias que dão à sua poesia um forte cunho gay (perdoe-se o termo anacrónico).
É que a Florença na qual Bronzino nasceu em 1503 era uma cidade em que, por um lado, havia uma sub-cultura homossexual «florescente» (para fazer o jogo de palavras) e, também, uma repressão fortíssima, que entrou especialmente em acção durante a carreira de Bronzino, carreira que coincidiu com a subida ao poder de Cosimo de’ Medici, o seu grande Mecenas (aliás, foi Cosimo que encomendou a «Passagem do Mar Vermelho» no Palazzo Vechio).
Florença fora, antes de Cosimo, uma cidade supostamente republicana (mas na realidade governada nos bastidores pela família Medici); essa farsa acabou com a assunção por parte de Cosimo do título de duque de Florença. A ditadura de Cosimo começou como começam todas as ditaduras: com a purga da oposição.
Cosimo mandou, ao princípio, torturar e matar os seus opositores; mas depois decidiu capitalizar na cultura homoerótica de Florença fazendo leis que perseguiam e condenavam às galeras homens culpados de sodomia (termo que não designava só sexo anal: também sexo oral ou masturbação contavam como sodomia). Cosimo precisava de condenados para remar nas galeras da frota florentina; e Florença não tinha falta de candidatos a esse tipo de condenação. Daí que, na gíria florentina, «galera» fosse um termo para sexo homossexual.
Na «Travessia do Mar Vermelho» do Palazzo Vecchio, Bronzino está, na verdade, a usar a história do Antigo Testamento para glorificar a vitória de Cosimo sobre a facção aristocrata que se lhe opusera na Batalha de Montemurlo (1537), liderada pela família Strozzi, rival da família Medici. Entre os egípcios afogados no fresco de Bronzino, vemos o brasão da família Strozzi a afogar-se também. A ditadura de Cosimo é, assim, vista como tendo protecção divina, ao passo que os seus opositores são como os egípicios destruídos por Deus. Portanto, na alegoria pictórica de Bronzino, os judeus são os florentinos «bons», ao passo que os egípcios são os florentinos «maus».
Este jogo de máscaras está presente – e de forma que ainda hoje nos surpreende e nos interpela – em dois retratos que Bronzino pintou, que são das imagens mais espantosas do século XVI. Um deles é um retato de Cosimo sob a forma de Orfeu, sentado de costas, mas completamente nu. Esse quadro está hoje em Filadélfia (nos Uffizi está o famoso retrato que Bronzino pintou de Cosimo vestido). Outro quadro extraordinário é o de Andrea Doria, representado nu, também, embora não completamente (mas vê-se uma pequena parte do pénis). Esse quadro está hoje em Milão. O tridente que «Neptuno» segura na mão pode ser interpretado como símbolo fálico, da mesma maneira que o arco do violino, no quadro de Cosimo nu, pode ser descodificado da mesma maneira. Tridente e arco funcionam aqui como gíria visual, análoga à gíria verbal que Bronzino usa nos seus poemas.
Na sua poesia, Bronzino usa uma linguagem altamente codificada para falar de temas proibidos de cunho sexualizado. Essa gíria está estudada pelos italianistas e tem um vocabulário básico em que várias palavras designam o pénis: «penello» (pincel) e «mortadella» são termos que facilmente compreendemos. Mais difícil de entender será «zanzara» (que significa mosquito, insecto que pica… e por isso é usado como gíria para pénis) e «cipolla» (cebola, entendida talvez como alho porro). Entre as palavras para ânus nesta gíria temos «ciambellotto» (uma espécie de donut) e também «finocchio» (funcho, palavra ainda hoje usada em Itália como termo pejorativo para homossexual).
Entre os poemas picantes de Bronzino, existe um chamado «Il raviggiuolo», nome de um queijo parecido com ricotta (nome que se escreve em italiano moderno «raveggiolo»). Segundo Lisa Kaborycha, cuja conferência sobre Bronzino recomendo vivamente (ver link na caixa de comentários), «raveggiolo» é gíria para nádegas especialmente belas e atraentes.
Voltando a Bronzino pintor, além do retrato de Cosimo (vestido), há também nos Uffizi o incrível retrato da mulher de Cosimo, Eleonora de Toledo; assim como os esplendorosos retratos do casal Panciaticchi. No Palazzo Vecchio estarei igualmente atento à «Adoração da Serpente de Bronze». E é claro que o «Martírio de São Lourenço», na igreja de San Lorenzo, terá obrigatoriamente de fazer parte da visita a Florença, este Verão, de Frederico e André Lourenço.