Cães danados
Esta é uma história baseada em factos reais. Nenhum animal foi maltratado no decorrer da mesma. Os únicos seres prejudicados por esta crónica são os seus leitores.
— “Puta Vida Merda Cagalhões” é uma canção punk — disse eu, abrindo os braços perante a evidência básica para qualquer conhecedor de música.
— O quê? É pimba puro. Um bocado raivoso, concedo, mas ainda assim pimba — Mr. Labrador contrapunha, notava-se-lhe prazer no debate.
— Atenta na letra, meu. É punk, de working class hero. “Até o euromilhões só merda me está a dar” — citei de cor — Transporta aquele Nel Monteiro de há vinte anos para os dias de hoje; imagina-o inglês, com netflix, internet e tal… Ou, se preferires, traduz a letra. Aquilo é “Idles”. Rott, concordas?
— Eh pá, faz sentido o que dizes — disse Mr. Rottweiler.
– Meus, eu já ouvi essa, vou andando. Há cadelinhas lá à frente — Mr. Grand Danois piscou o olho e acelerou o passo.x1
— A gente já te apanha, Grand — respondi.
— O que é aquilo? Um bar? Aberto? — Mr. Rottweiler parou como um cão de caça.
— Ó…queres ver que vamos ter que experimentá-lo? — Mr. Labrador acompanhou a irónica surpresa do amigo. O que não faltava em São Martinho do Porto, nessa noite de passagem de ano, era toda uma panóplia de bares, cafés e restaurantes onde servissem copos. Muitos deles já percorridos até àquela hora.
— O amigo desculpe — Mr. Labrador dirigia-se ao empregado do bar — Serve shots?
— Sim, senhor.
— Quais é que tem?
— Todos.
— Dê-nos vodka. Quatro copinhos — Mr. Rottweiler tomou a iniciativa.
— O Grand já bazou… — avisei.
— Ok. Faça seis.
Perante o meu esgar assustado, Mr. Rottweiler respondeu com um sorriso sádico.
— Dog, tens que te aguentar — disse-me Mr. Labrador.
Sou conhecido por Mr. English Bulldog, porém os meus amigos tratam-me por “Dog”. A haver diminutivo, eu preferia que fosse “Bull”. Não me chamarem “English” já não é mau.
Emborcada a vodka de penalty, voltámos às ruas que agora me pareciam cheias, barulhentas, menos nítidas.
Amigos desde a adolescência, além do gosto por piadas parvas, conversas infinitas sobre futebol e por gozar uns com os outros (sobretudo se alguém cometesse o erro de se vangloriar de um sucesso), tínhamos outra coisa em comum. Em qualquer lado onde fôssemos, uma certeza era partilhada: o ser mais escumalhoso, indigente, incómodo, bêbado, drogado ou simplesmente amalucado, viria sempre ter connosco. Fosse onde fosse. É certo e sabido que seria no meio de nós que esse pássaro desnorteado faria o seu ninho, que esse bote esburacado conseguiria aportar; em nenhum outro lado que não o seio do nosso grupo essa Crise encontraria o seu Portugal. Chamávamos a essa maldição “Charme Alcobacense”, embora também acontecesse na nossa própria terra. Uma espécie de Kavorka Krameriana (o feitiço que assolava a personagem de Seinfeld), mas que, ao invés de provocar a atração do sexo feminino, funcionava como um íman cósmico de gente que não interessa a ninguém. Um aspirador de Pandora.
Essa noite não foi excepção.
Um tanto ou quanto ébrios e vestidos de igual (fato e gravata pretos com camisa branca e óculos de sol) éramos, sem dúvida, alvos demasiado evidentes. Percorríamos a marginal da vila num passo atrasado pelo álcool ingerido quando, não sei de onde, surge Lobo Mauvinho, um indivíduo notoriamente embriagado que procurava problemas. Falava sozinho, berrando com o mundo.
— Ai de quem se meter comigo, percebem?
Desviei o olhar para ver se passava por nós como a brisa que vinha do Atlântico. Mas o que tínhamos pela frente não era menos que um vendaval. Com bafo de bagaço.
Se o tal de Murphy bebesse uns copos de vez em quando, talvez a sua Lei fosse menos certeira. O cambaleante Lobo Mauvinho, atraído por vapores ocultos do magnetismo infalível de Charme Alcobacense, ao qual não foi alheio um tipo que se desviou à última hora, decidiu colocar-se no caminho de Mr. Rottweiler que, distraído, deu por si perante o focinho encarniçado daquele, distando pouco mais de dez centímetros.
— O problema deste planeta são as pessoas, estás a ouvir? — Lobo Mauvinho espelhava, nos olhos raiados, a luz de quem finalmente encontra o seu propósito.
Mr. Rottweiler teve como instinto permanecer inerte. Fechou o peito, teso, sem dizer uma palavra.
— As pessoas, estou-te a dizer!
Tentei continuar o caminho na esperança de que os meus companheiros me alcançassem, mas logo verifiquei que Mr. Rottweiler não se tinha desviado um centímetro. Quando voltei para trás, ambos se encaravam com desdém de desenho animado, são assim expressivas as faces de quem bebeu demais.
— Está tudo impecável, boa noite para si também — tentei empurrar Mr. Rottweiler que não se demoveu. Queria por tudo que ignorássemos o recém-chegado animal, que eu sabia não trazer nada de bom. Para isso tive que recorrer aos truques que minha mente encharcada se lembrou. Apontei ao céu, literalmente:
— Olha ali um tonel de vinho a voar! — não obtive sucesso. Mr. Labrador foi o único que se virou para cima. A artimanha talvez fosse mais convincente se eu próprio não tivesse olhado apenas para o meu dedo.
A tensão foi crescendo. Mr. Rottweiler preparava-se para falar.
— …Temos problemas? — custou a arrancar a frase, a língua tem tendência a arrastar-se quando a vodka e o gin a puxam para baixo.
— O que dissestes? — Lobo Mauvinho espumava já dos cantos da boca, e eu não me atrevi a perguntar se, afinal, nos tratávamos por tu ou por vós.
Mr. Rottweiler cerrou os punhos e inclinou a testa para trás.
— Está tudo bem, a gente vai andando. Bom ano para si, amigo! Vamos, Rott — agarrei-lhe a pata direita, mas não o consegui demover.
Mr. Labrador, que até aí estava com um ar pensativo e em silêncio como quem vê os primeiros cinco minutos de um filme europeu, decidiu agir. De súbito e com uma ligeireza que nenhuma lei da Física seria capaz de explicar, conseguiu colocar o seu volumoso corpo entre Mr. Rottweiler e Mauvinho, de frente para este último. Temi o pior quando Mauvinho começou a fungar de raiva. Bem sei que éramos três para um, e mesmo não me apetecendo participar estaríamos sempre em vantagem. Mas era a noite do Réveillon e eu queria divertir-me, nunca estar envolvido numa cena de pancadaria. Além disso, estávamos a “jogar fora”, sabia lá se esse Mauvinho não tinha uma alcateia de uns cabrões malucos que viessem em sua defesa. Pelo sim, pelo não, olhei no horizonte tentando encontrar Mr. Grand Danois para lhe fazer algum sinal. Vislumbrei-o muito ao longe, tentando galantear uma Pincher que não parecia muito interessada.
E foi aí que tudo descambou.
— Isto só se resolve — as palavras de Mr. Labrador também demoraram a sair, não apenas pelas razões anteriormente invocadas, mas também por um sentido de timing de suspense adquirido pelo seu gosto por cinema — isto só se resolve… — esticou os antebraços para a frente, com as palmas das mãos viradas para cima — com um jogo de sardinha!
Lobo Mauvinho estava prestes a explodir. Atónito com a movimentação inesperada do adversário, parecia indeciso entre olhar para os olhos de Mr. Labrador ou para as suas mãos. Por sua vez, Mr. Rottweiler tinha a visão toldada pela nuca do amigo e eu, ali ao lado, esquecia o agnosticismo enquanto implorava por um milagre. Mauvinho respirou fundo e preparava-se para atacar. Puxou os braços atrás e avançou. Numa resposta de equiparável imprevisibilidade, pousou as mãos em cima das palmas de Mr. Labrador.
Não vou estar com metáforas: o que se seguiu foi um jogo de sardinha entre dois bêbados, com uma assistência de outros dois. Para ser verdadeiro, Mr. Rottweiler praticamente não viu a partida, mantendo a sua posição de guarda-costas literal. Já o nosso amigo fez uma exibição memorável, com uma vitória por três palmadas a zero.
— Três é capote! Vitória de Mr. Labrador! — gritei, quando me lembrei que podia ser aquele o momento final da altercação.
Mauvinho aceitou a derrota, demonstrando um fair play que o enobreceu: enquanto adversário e enquanto bêbado.
Seguimos por fim viagem ao longo do areal, até alcançarmos Mr. Grand Danois.
— Finalmente chegaram. Onde é que andaram?
— Por aí — respondi.
— Ei, o que é aquela mancha na camisa de Mr. Labrador? Sangue?
— Vinho tinto.
— Ok. Meus, é quase meia-noite! Estou ansioso pelo próximo ano. Vai valer por sete!
— Naturalmente.
Acabámos por ficar para o fogo de artifício. Estes bad boys não têm cá medo de foguetes.