Café: a chave(na) da diversidade
Desde a primeira palmada que levamos para chorar, até ao momento do suspiro final, somos bombardeados com conceitos delimitadores da nossa existência. Habituamo-nos a chamar as coisas por nomes que nos são ensinados a cada consoante aprendida. Nascemos literais. Dizemos literalmente o que nos é apresentado a cada dia. Mais tarde, com a formação daquele grilo no ombro ao qual chamamos “consciência” — pela facilidade de relação com as fábulas —, começamos a desbravar os caminhos enviesados do sentido. Não nos contentamos com “Margaridas são flores”, não. Vamos ao nível para lá do entendimento lógico e traçamos concepções com as flores que são as Margaridas. São boas para colher nos dias ímpar e oferecer a pessoas com gosto por casas com varandas espaçosas ou poderão ser ideais para enviar a outras de meia idade com problemas de arrumações. Estes, ou quaisquer outros significados que resolvemos inventar para não ser apenas algo estático. Dá gosto, este movimento de conceitos.
São estas ou quaisquer outras definições recambolescas que nos permitirão criar uma ligação com a palavra, com a flor ou a com a pessoa. Não nos ficamos pela soma se o que queremos, de facto, é sermos desafiados pelas palavras que se cruzam e nos deixam apontar o caminho a seguir. Sem levantar a caneta no labirinto, chegando a um fim que nos parece certo. Recolhemo-lo e peneiramo-lo aos poucos pelos entretantos da nossa vivência. Às vezes chocalhamos de mais à procura de melhor conteúdo, outras, deixamos a inércia chegar-se à frente e ficamos com tudo o que vier à rede. Sendo ou não peixe, que nem sempre pescamos alguma coisa disto.
Entre todos os chorrilhos de letras amontoados em sentimentos dispersos e construções várias, temos uma a ilustrar da melhor forma o poder de quem a diz. O seu nome, no sentido lato, não varia e é-nos apresentado como: café. Esse produto da natureza, que joga com o nosso quotidiano de todos os feitios, pelas formas que adquire. Não há um código lógico de “0321” para destrancar a sua definição. É um mistério da conveniência, a servir todos os propósitos aos quais nos predispusermos. O universo não quis nada com a generalização, neste caso. Ainda bem, já bastamos nós a rotular tudo o que mexe. Ou talvez tenha querido e lhe tenhamos trocado os pontos pelas vírgulas para dar continuidade à trama por detrás do mesmo. O certo é não o deixarmos por mãos alheias no que toca a emanciparmo-nos e expelirmos um “preciso de um café para acordar”, concedendo-lhe essa ideia de vitalidade tão nefasta para quem se diz independente. É o vício a levar a melhor sobre a racionalidade.
Nem todos gostam, mas todos o usam. Parece uma adivinha dos anos 60 — quando ainda se era demasiado literal —, a irromper na modernidade. Há um elo emocional a servir de bengala para situações inóspitas. Terminamos discussões com cafés duplos, usando a cafeína para nos dar o ímpeto de sair de rompante. Adiamos decisões ao passo de um café sorvido, com direito a onomatopeia para tornar tudo menos dramático. Marcamos encontros, prolongamos desencontros e fugimos da vida com uma simples frase: “temos de marcar um café”. Há para todos os gostos, servimo-nos dele para nos dar a pontuação certa para seguirmos com a vida. É o refúgio das horas mais negras e o ponto de equílibrio de amizades parcialmente desconstruídas. Serve a circunstância tão bem quanto o medo e não deixa a ansiedade fugir daquele pires que, durante minutos, nos suporta da queda livre.
Não necessitamos todos de gostar de café. Não há grão a multiplicar-se que resolva os problemas do mundo num piscar olhos. O café tornou-se o símbolo mundial da variedade. Da volatilidade dos sentimentos e da força dos acontecimentos. Não somos produto de um cafeeiro exposto à luz das decisões mundanas. Deixamo-nos ser um resultado das expressões usadas na altura de empregar a palavra. Somos livres de decidir o que queremos que “café” seja e isso são as palavras a fazerem o que de melhor sabem: darem-nos a liberdade de decidirmos o seu rumo, sem nos imporem a força das certezas irreversíveis.
Crónica de António Barradas