Café Ventura: a mitologia em prática
A propósito do contexto eleitoral actual e do protagonismo que o Chega e André Ventura têm vindo a ganhar ultimamente, têm surgido várias tentativas de atacá-lo num registo pessoal, principalmente pela sua postura. A reacção é compreensível. Como ficou claro nos últimos debates, Ventura serve-se de uma baixeza e mesquinhez constantes para distrair, silenciar ou perturbar os seus adversários. Para além disso, é dono de uma retórica que parece apurada entre horas ao balcão da taberna, discussões sobre futebol e aulas na Faculdade de Direito. Não fosse isso bastante, tudo isto vem revestido a uma atitude que varia entre o sensacionalismo de uma criança queixinhas, o amuo de um filho único e o perfume daquilo a que um dia Valete chamou “machistas de café que em casa mijam sentados na pia.”
Posto isto, desde que Ventura surgiu na vida política portuguesa que se discutem as melhores formas de combatê-lo. A esse respeito, não me parece que nenhuma delas possa resultar se não partir de uma tentativa de compreensão do que é que o sustenta. Quer gostemos ou não, há já uma percentagem significativa da população a apoiá-lo. Isto num contexto em que há, por outro lado, cada vez menos pessoas a votar. Importa perceber porquê.
Nesse sentido, é preciso ter em conta o contexto atual de descrédito e consequente afastamento entre os meios de representação política e os representados, que se traduz num fenómeno bilateral de desculpabilização e indiferença: a ideia de que os eleitores não têm poder, sentida pelos próprios, e a diminuição da pressão destes sobre os que os representam, que ofusca, progressivamente, a génese do poder dos segundos e os afasta ainda mais dos primeiros. Este ponto é fundamental, porque é sobre esta relação que assenta a legitimidade de qualquer sistema democrático parlamentar.
O perigo dessa dinâmica passa essencialmente pelo facto de as suas consequências serem cumulativas. Quanto menos pessoas votarem, maior é o afastamento entre elas e os órgãos de representação. Quanto maior o afastamento, mais crescerá o sentimento de que as decisões não têm em conta os representados. E mais crescerá a distância.
Ora, a esse respeito haverá diversas respostas e, porventura, até diagnósticos que rejeitem uma tal formulação do estado das coisas. Seja como for, esta questão será sempre essencial para a determinação de estratégias políticas, quer se acredite nela ou não. André Ventura é, aliás, o melhor exemplo disso. A sua retórica passa por posicionar-se como anti-sistema, diagnosticando assim o problema a que alega procurar dar resposta. Nesse sentido, o facto de a intenção de voto nele e no Chega vir a crescer parece indicar que há uma parte da população que se identifica com o problema, e isso não deve ser ignorado.
É aqui que começa a contradição. O que André Ventura faz, desde logo, é diagnosticar a partir desta conjectura um problema estrutural e não circunstancial, procurando passar a ideia de que o problema tem a ver com a forma como o Estado está organizado, não só no que ao seu princípio democrático diz respeito, mas à representatividade em si, em termos estruturais (como no número de deputados, que diz ser demasiado alto), mas essencialmente em termos da qualidade dos representantes (porque alegadamente ganham demasiado, porque são corruptos, porque são marxistas, porque são amigos uns dos outros, etc., etc.). Não é, portanto, surpresa que faça uso recorrente de estratégias como o ataque pessoal e a difamação, utilizando-as de cada vez que uma pergunta temática e concreta lhe é dirigida, porque a legitimidade e a consistência do diagnóstico dependem directamente da existência de casos particulares.
O problema é que os factos particulares a que Ventura recorre constantemente não só não servem para explicar absolutamente nada, como podem até — e deveriam — ser utilizados contra ele. O caso da comunidade cigana, por exemplo, que corresponde apenas a 0,5% da população. Ou o caso da comparticipação de 100% dos medicamentos de exilados ou refugiados, que em 2019 foram apenas 1.849 (o valor mais alto dos últimos 5 anos). Para se ter uma ideia, isso significa que, se cada uma destas pessoas implicasse um custo de 1000 em medicamentos para o Estado, isso representaria para cada português um custo de cerca de 30 cêntimos. Uma fortuna.
Ou ainda o argumento constante de que metade da população trabalha para sustentar a outra metade que não quer trabalhar. Aqui, porém, não é o problema que é mal identificado, mas os moldes. Em parte, Ventura tem razão: há, de facto, uma grande parte da população portuguesa a trabalhar para tapar buracos, até mais do que a maioria. Não obstante, esses buracos não são provocados pela outra metade da população, mas antes por uma minoria: a minoria que levou inúmeros bancos à falência e os salvou com dinheiro do Estado, como no caso do BES, do BPP e do BPN, ou que gastou milhares de milhões em obras públicas para depois entregar a exploração a privados, como em muitas auto-estradas e pontes, por exemplo a 25 de Abril. Será essa a metade da população de que Ventura tanto fala? Evidentemente que não.
Tendo em conta que a análise estrutural de Ventura depende destes pontos particulares, este terá sempre de ser visto necessariamente como o ponto decisivo, porque um diagnóstico desapropriado só pode ser coerente com a sua própria desapropriação. Assim, perguntamos: se os problemas que Ventura aponta não existem, o que é que ele procura resolver? E esse é uma pergunta a que só o seu programa pode responder. Aí, mérito lhe seja dado, o Chega é claro. Sobretudo em duas passagens estruturantes, a respeito do papel do estado e à forma como deve ser gerido.
Com efeito, defende-se, primeiro, “o afastamento decidido do modelo do Estado Social e do regresso ao Estado Arbitral, ou seja: que ao Estado não compete dar ou retirar, mas arbitrar”1 (aqui acrescenta-se, curiosamente, que “o modelo comum à Europa do Estado Social retirou a essa mesma Europa toda a capacidade, por falta de efectivo poder, de assumir uma estratégia própria a nível global, impossibilitando-a de se colocar, na cena mundial, como uma superpotência”, o que não pode deixar de ser visto como um comentário curioso. Quererá isto dizer que Ventura quer seguir o modelo comunista chinês, o militarismo norte-coreano ou o liberalismo do Bangladesh?); segundo, que a “a empresa Estado deverá funcionar como qualquer empresa que produz serviços, neste caso serviços de soberania”2.
Não é difícil vislumbrar a conclusão destas duas premissas. Por um lado, o Chega é contra o papel social do Estado. Por outro, defende que o Estado deve ser gerido como uma empresa, sendo que até o campo de soberania deve ser visto numa perspectiva de mercado. A isto juntamos a proposta relativa à alteração do modelo de regime para um regime presidencialista e acabamos com a imagem de Ventura a conduzir um Estado autoritário que é, simultaneamente, um mero regulador. No fundo, a desempenhar papéis e posições contraditórios, algo que, diga-se de passagem, já fez e continua a fazer, como no caso em que trabalhou para a Autoridade Tributária e, depois, para uma consultora que oferecia serviços de empresas que procurassem fugir ao fisco.
Aqui chegados, uma coisa parece ser clara: muito dificilmente este horizonte será benéfico para o cidadão comum. Nesse caso, a proposta fundamental do Chega nunca poderá ser cumprida. Na medida em que o discurso a partir do qual obtém o apoio cada vez maior é uma fraude porque a proposta e o plano o contradizem, Ventura está a prometer o contrário daquilo a que de facto se propõe. A sua maior promessa é também a sua maior mentira. Por outro lado, o facto de essa base de apoio existir demonstra que há de facto uma fracção significativa da população que acredita na existência do problema que Ventura se propõe a resolver, e isso, como já referido, não deve ser ignorado. Na maior parte dos casos, mentir sobre um problema será sempre mais satisfatório para alguém que acredite nele do que negá-lo. Que Ventura é um mentiroso já muitos sabem. Mas isso não basta. É preciso também procurar resolver o problema, retirar ao Chega o espaço que procura. Evidentemente, isso será sempre um processo complexo, com vários assuntos para resolver. O primeiro, porém, é simples: votar.
1 III B – Das Funções e dos Limites do Estado
2 III B1 – Das Funções Auto-reguladoras e de Gestão do Estado
Crónica de Guilherme V. Martins, estudante de mestrado em Filosofia em Berlim