Camboja. Não-lugar como casa
João Tamura nasceu em Lisboa, nos anos 90. É músico, poeta e fotógrafo. Partiu, em setembro de 2022, numa viagem sem data de regresso ou destino definido. Não-lugar como casa — em referência ao conceito de “não-lugar”, criado pelo antropólogo Marc Augé — é a série de crónicas que documentam essa viagem, numa simbiose entre as suas linguagens prediletas — a prosa e a fotografia analógica.
O Camboja é um pontapé no estômago. E não, não pensem que é um daqueles pontapés semi-suportáveis, dos treinos de Muay Thai para iniciantes em que eu e a Sara nos inscrevemos em Krabi e em Koh Samui. Não, o Camboja é um roundhouse kick à la Sylvester Stallone em cheio no estômago; curva-nos, obriga-nos a inspirar o ar que nos é possível, entre dolorosos fôlegos, e ordena que nos reergamos, pois o combate ainda não terminou. Cambaleamos até ao nosso canto do ringue, onde não encontramos treinador que nos guie ou assistente que nos sacie a sede e suture os golpes. Este é um combate que enfrentamos sós, e para o qual não treinámos o suficiente. Krabi não nos preparou para isto — muito menos Samui. O Camboja engoliu-nos, mastigou-nos e cuspiu-nos. Mostrou-nos que o mundo não é misericordioso ou gentil. E, desta vez, não escrevo sobre o quão belo é o nascer do sol em Koh Rong ou sobre a brisa que nos refresca o rosto, junto às margens do Tonle Sap e do Mekong(1). Não escrevo sobre as refeições, deliciosas e baratas, com que nos banqueteamos noite após noite. Não escrevo sobre Angkor Wat, sobre o Palácio Real, ou sobre Wat Phnom. Não escrevo sobre essas coisas, pois essas coisas pouco importam.
O que sabia sobre o país? Havia visto várias fotos de Angkor Wat e o filme First, They Killed My Father, realizado por Angelina Jolie. Sabia que era um país com um passado turbulento, cada vez mais popular entre mochileiros e voluntários. Como a Sara ensina inglês, pergunto-lhe:
— Por que não ensinas no Camboja? Pode ser bom. Ajudas as crianças com o seu inglês, tens uma nova experiência de ensino… Seria fixe, não?
Partimos de Krabi e aterrámos em Phnom Penh. Deixamos as mochilas no quarto de hotel, descemos para jantar e, de seguida, pesquisamos opções de voluntariado enquanto tutores de inglês. Temos duas opções: na primeira, ensinaríamos crianças pelo período mínimo de um mês numa parte rural do Camboja. Oferecer-nos-iam dormida e duas refeições por dia.
— Seria incrível… Mas não podemos ficar um mês no Camboja.
A segunda opção passaria por uma agência de voluntariado: pagaríamos uma taxa diária e ensinaríamos inglês a crianças num dos muitos orfanatos de Phnom Penh. Pesquisámos no Google: “volunteering as an english tutor in a Phnom Penh orphanage” e, tal como Alice, caímos num buraco negro — só paramos várias camadas abaixo da superfície luminosa da capital.
O Camboja é um país pobre — um dos países mais pobres do Sudeste Asiático. O rendimento de muitos cambojanos não ultrapassa os $4/dia. A maioria das famílias são numerosas e há pais incapazes de alimentar todas as bocas que se sentam em redor da mesa. A solução que encontram? Entregar a criança mais velha a um dos orfanatos do país, na esperança que esta seja alimentada três vezes ao dia, tenha acesso a uma educação formal e a cuidados médicos. Estima-se que pelo menos 80% das crianças nos orfanatos do Camboja não sejam, na verdade, órfãs. Os orfanatos tornaram-se, para uma minúscula minoria, um negócio extremamente rentável, alimentado por doações internacionais, por hordas de turistas e voluntários que diariamente têm o seu passaporte carimbado num dos postos fronteiriços do país, e pelo desespero de inúmeras famílias Khmer(2). Muitos voluntários chegam ao Camboja com as melhores das intenções. Outros são movidos por intenções mais dúbias, munidos de iPhones e selfie sticks, em busca da oportunidade perfeita para exibirem todo o seu altruísmo e bondade pelas redes sociais — qual Madre Teresa de Phnom Penh, vestida de Patagonia da cabeça aos pés(3). As crianças são, involuntariamente, mantidas num interminável loop: o orfanato torna-se a sua vida e trabalho; uma peça de teatro que desempenham dia após dia. Estas crianças já assistiram à mesma aula de inglês incontáveis vezes. Todas sabem as vogais e as consoantes do alfabeto latino; todas sabem os pronomes de sujeito e recitá-los de trás para a frente; e todas sabem conjugar o verbo “to be” na perfeição. São diariamente apresentadas a um novo professor, e despedem-se deste assim que o sol se põe. Ao contrário destas crianças, o professor, com um sorriso no rosto e um peito cheio de sentimento de dever cumprido, dá a sua missão por terminada e retorna ao seu quarto de hotel, no centro da cidade. Na manhã seguinte, parte para Siem Reap, onde se deslumbrará com a beleza de Angkor Wat. O “hello” e o “goodbye” são uma constante. Sem pais presentes — ou figuras que os substituam — estas crianças são incapazes de criar laços duradouros — a impermanência destes voluntários impossibilita-o.
Muitos destes orfanatos não estão sob qualquer tipo de regulamentação ou controlo governamental — funcionam como uma entidade privada, e as crianças estão inteiramente à mercê daqueles que gerem estes estabelecimentos. Adultos que lhes são totalmente desconhecidos penetram a sua vida sem verificação de antecedentes, cadastro ou historial; convivem com estas crianças dentro e fora destas paredes, sem supervisão — estas crianças tornam-se vulneráveis marionetas, sem controlo sobre os seus fios ou cruzeta. Cada vez mais olhares têm caído sobre estes orfanatos: o crescente turismo também serviu para desmascarar estas instituições e trazer alguma verdade à tona. Muitos pais desconhecem o paradeiro e o destino dos seus filhos após a carrinha do orfanato os afastar do seu olhar. Quando os descobrem, tentam resgatar a criança e trazê-la de volta a casa — cada vez mais ONGs e instituições privadas têm conseguido intervir com sucesso nesta missão, e cada vez mais crianças têm sido devolvidas às famílias das quais partiram. No entanto, a maioria das crianças dos orfanatos em Phnom Penh não tem tamanho fortúnio e, após a idade obrigá-las a abandonar o lugar que durante tanto tempo foi a sua casa, são entregues à sua própria sorte. Muitas são encaminhadas para a prostituição e, também como Alice, caem num buraco negro — e só param várias camadas abaixo da superfície luminosa da capital.
Jantamos em Preah Sisowath Quay, a avenida marginal de Phnom Penh. Observamos o pôr do sol, e a luz sobre o rio Tonle Sap tenta mascarar a realidade, como um filtro que se esforça por iludir o olhar — o belo tenta esconder o cruel, mas sem sucesso. A um quarteirão de distância, a rua 104. Depois, as ruas 118, 130 e 136. A prostituição no Camboja é ilegal, mas prevalente. Os néones vermelhos anunciam-no. Nas fachadas destes estabelecimentos, lemos as iniciais “KTV”(4). Tal como os orfanatos, também estes bares de karaoke são uma fachada, uma peça de teatro. Sim, aqui existem microfones, tripés, e os ecrãs LCD exibem a letra dos últimos hits do momento. No entanto, os homens que aqui entram não têm interesse em interpretar Katy Perry ou Justin Bieber sem desafinarem, ou tropeçarem nas palavras — os homens entram nestes bares com outro propósito. À porta destes KTVs, sob as luzes, mulheres sentadas fumam cigarros, chamam-nos, maquilham-se — e nem essa maquilhagem mascara que muitas ainda não chegaram à idade legal para beber — muitas raparigas foram vendidas pela própria família diretamente aos estabelecimentos onde agora se encontram e, sempre que conseguem, enviam o pouco dinheiro que recebem de volta a casa. Outras, vieram de orfanatos. Também aqui desempenham uma interminável peça de teatro. Entretém o estrangeiro, incentivam-no a beber — e bebem também. Mascaram a tristeza com sorrisos. São levadas para um quarto de hotel e rezam para a noite terminar o mais depressa possível. Estas ruas sucedem-se, parecem não terminar. Quarteirões e quarteirões de KTVs, hotéis, rooms by the hour, bares, liquor stores. Homens brancos, velhos, cambaleiam como zombies. Observam, escolhem, e desaparecem porta adentro destes prédios, tão luminosos como devolutos. “Já chega”, e caminhamos de novo até ao rio. Junto ao Preah Ang Dorngkeu, altar onde todas as noites os habitantes de Phnom Penh reúnem-se para orar e entregar oferendas, uma senhora vende pequenas andorinhas. Segundo a tradição, compramos a andorinha, segura-mo-la entre as mãos e, assim que a soltamos, pedimos um desejo. À frente desta senhora, uma longa fila. Parece que toda a cidade aguarda a oportunidade para pedir um desejo.
Aguardamos que os agentes da airasia abram os balcões de check-in. Chegámos tão cedo ao aeroporto que somente outra pessoa aguarda connosco: um senhor risonho, de mochila às costas e passaporte canadiano na mão.
— Where are you guys from? Portugal? Nice! Are you guys up for a cup of coffee? Yeah?! I’ll meet you upstairs!
Entregamos a bagagem e encontramos Kevin numa das mesas do Starbucks. Chegou ao Camboja há mais de uma década. Pergunto-lhe o que conhecia sobre o país antes de aterrar: havia visto fotos de Angkor Wat e o filme The Killing Fields, nos anos 80.
— But I had this vision, you see… It became my life’s mission.
Nessa visão, abria um carreiro por entre a terra. Nesse carreiro, correria água. Despediu-se e comprou um bilhete de ida para o país de The Killing Fields.
— I had a six figure job and what everyone would call an amazing life… but I felt empty inside.
Em 2009, o bairro de Dey Krahorm, no centro de Phnom Penh, foi demolido — a preciosa terra sobre a qual este se erguia foi vendida a uma construtora privada. Os moradores do bairro foram inicialmente realojados a 22km de Phnom Penh. 9 meses depois, viram as suas recém-erguidas casas de novo demolidas — também esta terra fora comprada por uma construtora privada. Foram finalmente realojados a 32km de Phnom Penh, num terreno de terra batida sem acesso a água potável ou eletricidade. A organização fundada por Kevin, Manna4Life, interveio e ajudou a reconstruir a vida e a casa destas pessoas. Paredes foram erguidas, canalização foi colocada, e eletricidade foi trazida para o bairro. Há oito anos inauguraram a sua primeira escola — que agora planeiam expandir — depois, um centro de filtragem e tratamento de águas, que assegura água potável à comunidade e, este ano, terminaram a construção da primeira de duas estufas que alimentarão a escola e o bairro. De repente, mesmo tantas camadas abaixo da superfície da capital, uma pequena luz acende-se. Há outras organizações que tentam fazer a diferença no Camboja: a Daughters of Cambodia providencia, desde 2007, formação, trabalho e salário a mulheres que tentam sair das redes de prostituição de Phnom Penh; a This Life trabalha em conjunto com comunidades desfavorecidas, identificando e codesenhando soluções para os desafios e necessidades que enfrentam; a Cambodian Children’s Trust tem como principal objetivo terminar com os orfanatos que proliferam ao longo do país, colmatando as dificuldades que levam pais e filhos a separarem-se.
E são estas pessoas que concretizam os sonhos pedidos às andorinhas libertadas frente ao rio. Obrigado, Kevins.
Referências na crónica:
(1) – Rios que atravessam a cidade de Phnom Penh;
(2) – Maior grupo étnico do país. Khmer também é o nome da língua oficial do Camboja;
(3) – Marca americana extremamente popular entre viajantes e mochileros;
(4) – Bares de karaoke, extremamente populares na China e no Japão. Muitos KTV no Camboja são, na verdade, bordéis.