Cancelaram a empatia

por Pedro Morgado,    21 Julho, 2022
Cancelaram a empatia
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Ao longo da última semana, mais de uma dezena de comentadores e humoristas com elevada exposição mediática escolheram produzir textos e comentários nas redes sociais com visões negativas acerca das pessoas trans. As ideias veiculadas, independentemente do tom, estão francamente afastadas dos consensos técnico-científicos atuais.

Estes textos foram amplamente difundidos e rapidamente utilizados como instrumento na campanha contra o reconhecimento dos direitos civis das pessoas trans. Ao mesmo tempo, um vasto conjunto de pessoas, incluindo alguns membros da comunidade trans, expressou nas redes sociais a sua tristeza ou revolta com o teor discriminatório das ideias veiculadas.

Emerge então uma nova vaga de comentadores e humoristas em defesa dos primeiros. Apesar de todos continuarem a escrever livremente nos principais órgãos do país, houve mesmo quem ousasse falar em “perseguição”, “cancelamento” ou “apedrejamento”. Como é possível? Perdeu-se a noção de tudo? A liberdade de expressão acaso termina na palavra dos humoristas e colunistas?

Surpreende que os indefectíveis dos humoristas ou colunistas reajam de forma tão visceral contra as alegações das pessoas da comunidade trans, da comunidade queer e da sociedade em geral que se sentiram legitimamente magoadas com o teor de alguns textos ao mesmo tempo que se calam perante a instrumentalização desses textos pelas pessoas e grupos que pretendem bloquear os direitos civis das pessoas trans.

Ao mesmo tempo, alguns comentadores de tudo, ávidos de satisfazer as suas claques, procuraram dar-nos lições sobre temas altamente complexos como o sexo e o género. Escrevem sobre genética de forma simplista, quando não mesmo simplória, desprezando a evidência científica, desconhecendo os consensos técnico-científicos e com fundamentos que aprenderam em aulas de Biologia que aconteceram há 10, 20, 30 ou 40 anos atrás.

Não está em causa a intenção (boa, má ou inexistente) de quem produziu alguns dos textos. Mas não deveria causar polémica a ideia de que as palavras, independentemente do contexto em que são produzidas, têm o potencial de causar dano a terceiros e, cumulativamente, contribuírem para perpetuar ideias discriminatórias que fundamentam discursos e comportamentos de ódio.

Mais que isso: parece que demasiada gente se esquece que essas palavras dos humoristas e colunistas, livremente expressas, também podem ser livremente escrutinadas, debatidas, questionadas e contraditadas sem a vitimização do cancelamento ou do politicamente correcto a pairar sistematicamente no ar, poluindo o debate necessário e saudável.

No meio disto tudo, as pessoas trans continuam invisíveis em Portugal. Quase ninguém as ouve, não têm espaço nos jornais nem nas televisões, não têm lugar no parlamento nem nas direções partidárias, não existem. São invisíveis. E são um mero instrumento da nova cruzada política da reação.

Em que momento é que perdemos a empatia, o humanismo e o respeito pelos outros para ceder à linguagem simplista do ódio só porque não conhecemos ou simplesmente não entendemos a diversidade que existe?

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