Capitão da vida
Um dia, mais um 12 de Junho na vida de Simon Skjaer. Nessa manhã de sábado o dinamarquês acordou com um sorriso nos lábios. Estava calmo apesar de excitado; concentrado apesar de ansioso. Eram sensações contraditórias que lhe eram familiares mas, mais importante, desejadas. É provável — nunca o saberemos — que Skjaer tenha reservado uns segundos para agradecer a vida que lhe era oferecida: aos 32 anos o seu trabalho foi um sonho realizado: futebolista profissional e como se isso não bastasse, um defesa-central considerado e que jogava num dos clubes de topo europeu, o A.C. Milan. Melhor ainda: era capitão da sua selecção nacional, uma honra e responsabilidade atribuída a muito poucos.
Terá feito alguns exercícios ligeiros com os colegas, trocado piadas, ouvido a última palestra do treinador antes do jogo que se avizinhava: a estreia da Dinamarca frente à Finlândia para um campeonato europeu que por circunstâncias do universo se iria realizar em diferido, um atraso de um ano em relação à data marcada. Pouco importava: a ansiedade, a vontade, os silêncios eram os mesmos das grandes competições, dos jogos em que tudo tem de ser entregue.
No túnel de entrada do estádio, o nervosismo de Skjaer era o mesmo dos colegas: uma emoção presente mas discreta, quase anónima. Um capitão é um líder e o seu rosto tem de o mostrar em permanência. Assim foi na tradicional moeda ao ar, no sorriso amável que trocou com o árbitro e com o capitão adversário, “bom jogo” talvez tenha dito.
Um 12 de Junho, capitão. Mais um 12 de Junho e o som de um apito e uma bola a rolar e milhões a ver, e corpos, e olhares e velocidade, não os deixar passar e retomar a posse de bola, liderar, dar ordens para os colegas se posicionarem melhor, gritar, não falhar, não falhar, não falhar, este jogo é a nossa vida.
Aos 42 minutos de jogo o capitão da selecção dinamarquesa de futebol profissional percebeu o que era a vida. E não era o jogo, nunca é o jogo. Ao longe, do lado esquerdo, o número 10 da sua equipa cai desamparado, sem razão nem remédio. Não há tempo para pensar, para nada. Isto é a vida, isto é a morte, poderá ter lembrado Skjaer enquanto corria como um louco da sua posição habitual até ao companheiro entregue aos caprichos dos deuses perante um estádio de Copenhaga em choque, perante os colegas e adversários petrificados, perante todos os que viam e estavam arrasados pela violência da fragilidade de flor que é a vida humana.
Simon Skjaer aproximou-se do companheiro Christian Eriksen, reconheceu a situação e agiu, a única forma de existir naquele momento. Protegeu o pescoço do jogador caído, colocando-o de lado e abrindo a sua boca de forma a libertar as vias respiratórias caso viesse a sofrer de convulsões. Passaram 23 segundos até que a equipa médica da selecção adversária, mais próxima do acidente, pudesse chegar e tomar conta da situação. Vinte. E. Três. Segundos.
«Que tempo é este que não é o meu, que não é o de Christian, que não é o da sua namorada Sabrina que vejo daqui em lágrimas? Que segundos eternos me oferecem a mim, a nós, ao meu amigo a um segundo de distância de todos os segundos finais? De que nos vale?», não terá pensado Simon Skjaer.
Com os médicos já a prestarem a assistência necessária, o capitão teve tempo para fazer o ainda mais belo: ordenar uma cortina humana de pudor. Porque a vida não pode ser escancarada mesmo quando existe a possibilidade iminente de chegar ao fim. Em lágrimas, os companheiros obedeceram.
O resto sabemos. O resto ganhámos. O capitão mostrou-nos como podemos enfrentar a brisa que é a nossa vida. Nenhum 12 de Junho será igual a um 12 de Junho. Assim nos preparemos.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.