Carnaval rebelde

por Duarte Benard da Costa,    3 Março, 2025
Carnaval rebelde
Crianças que visitaram “O Século”, Carnaval, 1926. (Arquivo Nacional – Torre do Tombo) / DR
PUB

Há algum tempo que o carnaval está inscrito no rol dos brandos costumes. Já no Estado Novo o carnaval era parte de instituições, com crianças mascaradas de arlequim e indígena americano a desfilar pelas ruas ou em bailes infantis. Também hoje o carnaval tem uma faceta institucional, é pão e circo, sendo organizado pelas escolas, juntas de freguesia, câmaras municipais. Até mesmo o mítico carnaval da escola António Arroio, em Lisboa, já pouco tem de provocador, recebendo pouca reacção da sua contraparte no liceu Camões. Agora, é raro alguém sentir surpresa, choque, ou até horror com máscaras de carnaval. Nem o mais horroroso morto-vivo causa reacções a quem passa na rua.

Mas nem sempre foi assim. A ideia e o facto do carnaval já representaram ameaças às estruturas institucionais. Quando Mikhail Bakhtin aplicou o conceito de carnaval à literatura, para descrever certos tipos de romances, estava a subverter as linhas programáticas estalinistas concebidas para a cultura e literatura sob a égide do Realismo Soviético. Este programa destinava-se a criar narrativas de estabilidade e enaltecimento da terra e dos trabalhadores, e ao mesmo tempo a glorificar a revolução; e funcionava em paralelo com uma política de purgas culturais e expulsão de artistas e escritores. Afinal, também Platão propôs uma cidade sem poetas. Por causa do seu inconformismo literário, Bakhtin e a família foram exilados para Qostanay, Casaquistão. O seu colaborador e amigo Medvedev foi fusilado. Na verdade, o carnaval de Bakhtin anunciava uma ideia que hoje em dia parece não trazer surpresa nenhuma: que os livros escapam a leituras lineares, ou a interpretações oficiais. Estes livros são, em si mesmos, carnavalescos. Para Bakhtin, os livros carnavalescos têm a capacidade de apontar para direcções diferentes, para coisas fora deles próprios e assim transcendem qualquer tentativa de apropriação do significado por uma figura de autoridade. A noção de carnaval reforça a ideia de que os livros podem ser subversivos para narrativas oficiais, uma noção urgente naquele tempo – e no nosso.

Julia Kristeva, autora pouco traduzida em Português, retoma este conceito nos anos sessenta e expande-o para todo o género do romance. Para Kristeva, os romances são intrinsecamente carnavalescos. A sua análise do texto do romance, focada numa obra medieval, reitera as potencialidades subversivas da literatura, que altera a nossa noção de como as coisas são – e de como somos nós mesmos. Fica tudo de pernas para o ar. O lado carnavalesco de uma obra começa por debilitar a figura do autor, retirando-lhe a autoridade – confirgurando uma espécie de morte do autor, num piscar de olhos ao amigo de Kristeva, Roland Barthes. Se o romance que esta teórica analisa usa de várias referências às Escrituras, Kristeva vem defender que de facto o romance subverte a tradicional autoridade do autor. A ideia de que quando lemos temos de procurar o que o autor queria dizer; ou a ideia de um autor divino, com intenções, as quais é o nosso objectivo interpretar e descobrir – estas ideias caem por terra. O romance escapa a quaisquer leituras prescritivas e introduz uma multiplicidade interpretações alternativas.  

A teoria de Julia Kristeva é também ela política, precisamente porque confere ao leitor a responsabilidade e potencial interpretativo. A compreensão de um texto não está a cargo do seu autor, nem de um proto-autor, mas de cada leitor. Ao passo que Marcel Proust escreve que onde o livro acaba o leitor começa, Kristeva olha para o conceito de texto como abrangendo uma vasta comunidade de leitores, obras literárias, e factos históricos. Reparar no lado carnavalesco da literatura permite-nos ir para além da apropriação de textos literários feitas pelos mais diversos regimes políticos e bandas ideológicas. Essencialmente, a literatura subverte ideia de que as coisas são o que nós achamos que elas são. A literatura implica uma rebeldia contra narrativas lineares feitas por seja quem for, não porque os leitores de hoje em dia sejam particularmentes especiais, mas porque a literatura, com a sua plurivocidade, o permite. Sejam as obras do realismo soviético de estaline, seja Os Lusíadas no Estado Novo, ou Saramago nos nossos dias, qualquer um destes textos consegue evadir-se aos grilhões interpretacionais que tanto lhes têm tentado impor. O carnaval é por isto revolucionário.

Pode-se dizer que foi por isto que Platão expulsou os poetas da cidade, por causa deste lado desonesto e aliciante, deste ar malandro e carnavalesco, desta teimosia em nunca caber numa categoria, numa leitura arrumada. Para Platão, os poetas poderiam voltar se houvesse utilidade nisso para o estado. Talvez porém a redenção da literatura perante a cidade passe por esta mesma faceta carnavalesca. O carnaval não é uma concretização do relativismo de uma época da pós-verdade. Não é o instrumento de cepticismo radical. Nem é um estado dionisíaco de vale-tudo como se tem observado em recentes exibições políticas. Para Kristeva, o carnaval representa a inversão de valores e estruturas pré-estabelecidas, uma revolução introspectiva. E esta subversão da leiturazinha obediente ajuda a formar leitores independentes.

Se Julia Kristeva nos mostra que o romance, em contextos ditatoriais ou doutrinários, é inerentemente revolucionário, podemos achar que a literatura faz bem em ficar fora de portas. Contudo, o projecto político de Kristeva contido nesta noção do carnaval aponta para a emancipação do leitor enquanto ser pensante, enquanto pessoa política, aponta para a justiça social, para a capacidade de inclusão e de entendimento da diferença. Regressando a Platão, tem de se pensar como se quer a cidade. Se não a quisermos repressiva, de vistas curtas, com medo de outras narrativas, receio de versões diferentes da história, de outras leituras, talvez então possamos receber a literatura de novo na cidade, com espaço para as cabriolas do carnaval.   

As máscaras, os desfiles, os carros alegóricos podem estar agora nas mãos organizadas das instituições. O chuvoso carnaval lisboeta pode estar amodorrado no conforto de um vestido de Elsa 100% poliéster, ou das crianças que das dez às onze vão desfilar entre três ruas num bairro qualquer. Porém, a confiarmos em Kristeva é na literatura e não nas ruas que vamos encontrar o carnaval. Carnaval esse cuja subversão e revolução se sintetiza nos versos de má consciência de O’Neill: ‘Vivo de acrescentar às coisas/ o que elas não são./ Mas é por cálculo,/ não por ilusão’.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.