“Carne para canhão” no realismo além-fronteiras de “Great Yarmouth: Provisional Figures”, de Marco Martins

por Miguel Rico,    21 Março, 2023
“Carne para canhão” no realismo além-fronteiras de “Great Yarmouth: Provisional Figures”, de Marco Martins
“Great Yarmouth – Provisional Figures”, filme de Marco Martins

Great Yarmouth: Provisional Figures é uma coprodução Uma Pedra no Sapato (Portugal), Les Films de l’Après-Midi (França) e Elation Pictures (Reino Unido) e encontra-se agora disponível nas salas de cinema, distribuído pela NOS Audiovisuais.  

Estamos em 2019 e faltam poucos meses para o Brexit, o local é Great Yarmouth, uma cidade balnear no nordeste de Inglaterra, perto de Norwich, agora abandonada e empobrecida. Aos portugueses, outrora designados de “carne para canhão”, pelos ingleses do passado, chamam-lhes agora, os contemporâneos, de “pork and cheese”. Apesar disso, na voz da protagonista, Tânia (Beatriz Batarda), “[os locais] precisam deles para trabalhar nas fábricas” e fazem o trabalho que ninguém quer fazer. 

Com Great Yarmouth: Provisional Figures, inspirado por testemunhos e relatos reais de habitantes de Great Yarmouth, Marco Martins dá continuidade à temática abordada por João Canijo, em Ganhar a Vida (2001), por Cristina Pinheiro, no filme Menina (2017), ou mesmo por Ana Rocha de Sousa, com Listen (2020). Esta estreia vem sublinhar uma realidade tão pertinente quanto despercebida na filmografia portuguesa sobre imigração. 

https://vimeo.com/752233927?embedded=true&source=video_title&owner=32465191

Tânia, também chamada de “Mãe” pelos seus hóspedes, recruta imigrantes portugueses e instala-os nos hotéis precários do seu marido inglês, na Green Mile, para trabalharem numa fábrica local de processamento de perus. Sempre que encontra disponibilidade, a protagonista ouve sessões de aprendizagem de inglês nos auriculares, sonhando, um dia, obter a nacionalidade inglesa. 

there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too tough for him,
I say, stay in there, I’m not going
to let anybody see
you

Charles Bukowski

O mesmo passarinho azul, que Bukowski descreve no seu poema, habita o peito de Tânia, a antiga trabalhadora da fábrica que sonha, agora, em remodelar completamente os hotéis do marido e transformá-los em residências para turistas sénior, onde passem o tempo entre atividades como aulas de dança, karaoke e bingo. Por enquanto tudo não passa de devaneio, uma miragem enquadrada pela janela através da qual a protagonista espreita, juntamente de Raúl (Romeu Rua), o seu “parceiro no crime”, na esperança de encontrarem algo que se assemelhe a uma ambição. 

Durante Great Yarmouth: Provisional Figures, é impossível não pensar em São Jorge (2016), o último filme de Marco Martins. Alguns dos planos de Tânia (quase sempre próxima da lente), que lhe iluminam o semblante trancado na penumbra, parecem aludir à fotografia de filmes como Raging Bull (1980), Cinderella man (2005) ou Million Dollar Baby (2004). Também neste mundo, a protagonista luta, com muito sangue, suor e lágrimas por algo melhor. 

“Great Yarmouth – Provisional Figures”, filme de Marco Martins

Este é um filme audaz, tanto na sua forma como nas temáticas que aborda. A mis-en-scène fere-nos a consciência ao exaltar a violência e o desconforto que descarnam um realismo social duro, cru e frio. Marco Martins coloca em confronto as temáticas do drama psicológico, a trama de um thriller social e a formalidade do filme de horror para nos servir um enredo dickensiano vil e pesado, que Beatriz Batarda carrega aos ombros. 

A performance — se lhe podemos chamar assim — de Batarda alcança uma forma tão sublime que suplanta a transformação radical e o acting do método. Durante o decorrer do filme, assistimos a uma metamorfose que transcende a própria figura da atriz e vai muito, mas muito além do guião. O que está na película não é representação, é incorporação total do contexto da personagem, desta forma, Beatriz Batarda torna-se o recetáculo através do qual a mensagem central do filme atua, ela é o rosto da mágoa e a esperança ardida do imigrante português em Inglaterra, é o sonho apagado, fundido pela promessa de uma vida melhor. Esta personagem torna-se, graças à mão de Midas de Batarda, um ato de coragem. 

O local, Great Yarmouth, apresenta-se como um palco de horrores, uma cidade-fantasma por onde a anti heroína, e figura central do filme, deambula. Vêm-se os cantos húmidos e conspurcados dos quartos do hotel que contrastam a natureza fria e artificial, ora estéril e cirúrgica, ora imunda e polposa, do matadouro dos perus. Contemplam-se os vazios e os não-lugares, os dinners de fish and chips, parques de estacionamento e ruas abandonadas, sítios em vácuo enquadrados pela nostalgia de um Paris, Texas (1984) ou na obscuridade de um Lost Highway (1997). Depois, preenchem-se esses mesmos vazios aos balcões de pubs, em sessões íntimas de karaoke e danças em bares-discoteca.

“Great Yarmouth – Provisional Figures”, filme de Marco Martins

Somos transportados, ao som das teclas inquietas de Schubert, até à anatomia de uma realidade social angustiante, tenebrosa, desumana e, por vezes, sádica. A câmara de João Ribeiro, diretor de fotografia, é isenta de sentimentos, implacável, e apenas observa esta realidade permanentemente tensa. Os enquadramentos e o trabalho de iluminação formam o complemento ideal a esta Great Yarmouth que imerge o espectador num limbo decrépito, numa teia de deceções e vexames que tecem, a bom ritmo de uma montagem linear e hipnotizante, um autêntico pesadelo.  

Há que destacar, ainda, o trabalho de mais umas “provisional figures”, estas absolutamente indispensáveis, como Romeu Runa, Nuno Lopes, no papel de Carlos e Rita Cabaço, que interpreta Sandra. Ao elenco português, junta-se Kris Hitchen, protagonista do filme Sorry We Missed You (2019), do realizador britânico Ken Loach, aqui na pele Richard, o marido de Tânia. 

Great Yarmouth: Provisional Figures é uma obra ruidosa que apanha os cacos do espírito português, por entre os escombros do epicentro que foi a crise económica, para construir um mosaico de tempo assente em momentos de realidade bruta e excruciante. 

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