Carta a Beatriz Lebre

por Maria Moreira Rato,    5 Junho, 2020
Carta a Beatriz Lebre
Fotografia de Andrew Buchanan / Unsplash
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Dispensemos as formalidades desnecessárias e insensíveis como “Antes de mais, espero que estejas bem” ou “Como tens estado?” pois, infelizmente, alguém achou que tinha o direito de te roubar a vida. E, deste modo, vejo-me incapaz de iniciar esta espécie de missiva da forma que seria adequada. Adequada se estivesses entre nós. Espero que permitas que te trate de modo informal – não por ter sido desenvolvida a familiaridade típica entre quem é objeto de estudo e divulgação por parte dos media, mas sim porque considero que a nossa idade exatamente igual acaba por facilitar este quase monólogo que transitaria para a área da comunicação interpessoal se não tivesses visto os teus dias repletos de compreensão do outro, música, sorrisos e generosidade (desculpa se esta análise é algo pobre, mas escrevo apenas sobre aquilo que consegui apurar através do modo como foste apresentada pelos teus amigos e familiares) a esvaírem-se entre os dedos por quem, provavelmente, vivia um quotidiano assente em pilares muito distintos daqueles em que se baseava a tua realidade. 

Quando tinha 14 anos (quando tínhamos 14 anos, curiosamente), li um livro cujo título é Cartas da Beatriz, de Maria Teresa Maia González. Na obra anteriormente referida, de cariz epistolar tal como este texto que tento escrever-te, a autora dá voz a uma adolescente vítima de bullying por três colegas de turma. Não sabendo a que técnicas recorrer, escolhe como mecanismo de coping a redação de cartas ao pai com o objetivo de desabafar por meio das palavras. Num dos textos, a rapariga escreve: “Provavelmente, vais ficar um bocado admirado por saber que, na minha turma, há um “grupinho” aterrador, ou melhor, um clã de três raparigas. (..) Têm uma inteligência muito, mas, muito abaixo da média (…) têm o grau cultural de uma galinha de aviário, (…) adoram falar do que não sabem nem interessa a mais ninguém, e… ODEIAM—ME. O ódio é de resto (…) um sentimento a tempo inteiro”. Admito que, poucas horas após ter conhecimento da tragédia que acometeu o teu curto percurso, recordei-me desta obra e de uma passagem da mesma, em particular, por variadas razões que enumerarei.

Em primeiro lugar, no ano passado, 35 mulheres portuguesas morreram às mãos dos companheiros. Por exemplo, um homem de 35 anos degolou a mulher de 34 com um x-acto e pôs-se em fuga. Os filhos da vítima, de dois e seis anos, assistiram ao homicídio da mãe. E abordo esta temática por uma razão: o teu caso é erradamente associado ao crime de violência doméstica porque este pressupõe a existência de um relacionamento próximo – de índole familiar ou amorosa – entre o agressor e a vítima. Sei bem que dominavas conceitos como este, no entanto, importa realçar esta especificidade relativa a um termo que ouvimos recorrentemente, mas acabamos por não compreender. Sabes, há muitas coisas que, só por serem comuns, parecem integrar o nosso dicionário enquanto palavras sem a devida desmistificação. Apropriamo-nos delas como se fossem nossas e as entendêssemos. Tal como o teu agressor acreditou plenamente que conhecia vocábulos como o amor, que mesclou com a obsessão.

Na minha ótica, sofreste violência de género, isto porque segundo a Organização das Nações Unidas “o termo utiliza-se para distinguir a violência comum daquela que se dirige a indivíduos ou grupos sobre a base do seu género”. Gosto de pensar no séc. XXI como sinónimo de evolução psicológica e societal, constituindo um paradigma da mudança de mentalidades retrógradas. Porém, não posso negar que por pertenceres ao género feminino, o teu agressor terá levado a cabo uma conduta criminal que está intrinsecamente conectada ao patriarcado. Esta formação social relaciona-se com a ideia de que os homens detêm o poder, dominam e oprimem as mulheres e é associada a atos como o stalking (envio de uma quantidade elevada de mensagens de texto, concretização de muitas chamadas telefónicas, etc.), as agressões físicas, a coação psicológica, a perturbação da tranquilidade e, em última instância, a prática de homicídio. 

Os atos de violência premeditada de que foste alvo levam-me a reler as palavras da tua narradora homónima: “‘grupinho’ aterrador” e “adoram falar do que não sabem”. Importa referir que efetivamente desconheço se nutriste algum tipo de sentimento pelo criminoso ou se, por outro lado, ponderaste construir uma relação bonita com ele. Não me interpretes mal, gostaria de perceber os meandros das vossas interações – não as rotulando de “romance secreto” ou “namoro” –, mas nada daquilo que possa ter existido entre vocês justifica o cometimento de um ato inexplicável e irreversível como aquele de que foste vítima.

Em segundo lugar, quero que saibas que eu – e muitas outras pessoas – não fazemos juízos de valor precipitados nem nos deixamos emaranhar na teia de cronologias, revelações, testemunhos ou publicações veiculados ignorando o cerne da questão. Em jornalismo – e na vida, no geral – é imperativo que abordemos os assuntos a partir de uma perspetiva fundamentada em certezas e não em cenários hipotéticos. Não posso tecer longos comentários sobre a tua personalidade, divagar acerca dos teus últimos dias ou escrever palavras emocionantes nas redes sociais que emanem elogios e saudade. Lamento que não possa, gostaria de ter privado contigo. Mas é-me possível raciocinar a partir de factos concretos e irrefutáveis. Tinhas 23 anos, dividias-te entre um mestrado – a que, segundo aqueles que te conheciam, te dedicavas profundamente – e o sonho de regressar de modo mais profissional e constante ao universo musical. Para além disso, tinhas um sentido de humor peculiar – comprovei-o através de vídeos partilhados por quem te queria bem – e estavas sempre pronta a ajudar terceiros – com um pijama polar nas mãos e comida reconfortante à espera de uma amiga (sem lugar onde dormir certa noite) ou um “Bom dia!” contagiante enquanto trabalhadora da Disney Store. “ODEIAM—ME. O ódio é de resto (…) um sentimento a tempo inteiro”, escreveu a narradora ao pai. Quem é que te poderia odiar, Beatriz? Mas estou certa de que te passou isso pela cabeça no decorrer dos teus últimos momentos – de agonia, infelicidade e injustiça – e queria esclarecer (desculpa optar por caminhos que tão bem conhecias e nos quais sou pouco experiente) que o ódio “não é simplesmente uma emoção, mas um mix psicológico composto por três elementos (inclusive os mesmos do amor), a saber: intimidade (negada), paixão, empenho”. Quem o escreveu não fui eu por puro capricho ou ignorância, mas sim o psicólogo Robert Sternberg, antigo presidente da American Psychological Association, no livro Psychology Of Hate (2005), esclarecendo ainda que “dependendo de como estas características se ativam e cruzam, surgem os diversos tipos de ódio e modos de odiar”. Outro aspecto que me fez refletir enquanto realizava esta pesquisa, foi o seguinte: Sternberg explica igualmente que “quem chega a odiar fará uso de toda informação para formar a categoria do ‘nós’”. Ora, creio que não tenho de me alongar mais porque, nesta história, alguém confundiu o pronome pessoal “eu” com o “nós”.

Por último, nas últimas páginas de Cartas da Beatriz, a jovem envia uma única carta ao pai e explicita que se arrepende de não ter pedido ajuda e evitado que algumas coisas acontecessem. O arrependimento trata-se de um ato emocional que se prende com o passado. Na verdade, arrependimento é uma palavra de origem grega que significa conversão, mudança de direção, de temperamento e de carácter. Habitualmente, implica que nos compadeçamos com a influência exercida pelas nossas ações menos corretas no nosso quotidiano ou no dos outros. Tenho de ser assertiva e honesta contigo: o teu agressor ainda não se demonstrou arrependido. Não sei se demonstrará compaixão. Todavia, aquilo que me corrói é desconhecer se pediste ajuda indiretamente. Desconhecer se, tal como a Beatriz, escreveste textos que não querias enviar por vários motivos. Se redigiste mensagens sem nunca clicar em “Enviar”. Se tinhas medo e, alguma vez, discerniste um desfecho como este. Mas, por mais inusitado que possa parecer, tenho uma notícia positiva para te dar: morreste em vão, mas a tua voz está a ser enaltecida mais do que nunca. No dia em que estou frente ao meu computador a teclar-te estas palavras, o grupo ISCTE – Em Memória de Beatriz Lebre enche-se de publicações repletas de ternura e dedicação que te são dirigidas. À porta da instituição que frequentavas, o coletivo feminista “Por Todas Nós” manifestou-se sob o lema “Nem mais uma – Homenagear Beatriz Lebre e todas as vítimas” e deixou claro: “Isto é uma guerra contra as mulheres. Gritamos: Nem mais uma!”.

Beatriz, eu sei – ambas sabemos – que a morte anda de mãos dadas com o súbito altruísmo, o súbito tributo e a súbita melancolia. Aliás, não sou cínica a ponto de afirmar que alguma vez deparei com o teu nome antes de entrares em minha casa, pela televisão, por motivos que poderiam ter sido a tua ascensão enquanto pianista ou a tua fantástica prestação como psicóloga. Deixa-me fazer uma analogia. Na tua página do Facebook, partilhaste certo dia (e desculpa-me pela invasão) versos relativos à música Malando Quando Morre de Chico Buarque. “Menino quando morre vira anjo / Mulher vira uma flor no céu / Pinhos chorando / Malandro quando morre / Vira samba”. Beatriz, esta quintilha não se aplica a ti. Tu morreste, mas tornaste-te vida em todos nós. 

Crónica de Maria Moreira Rato

 

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