Carta a Catarina, filha de Salgueiro Maia
Catarina, apenas li hoje o que escreveste ao teu pai no passado sábado, dia 25 de Abril. Não nos conhecemos, desculpa-me a familiaridade do “tu”, mas não me sai de outra maneira. Talvez por seres filha de um homem que não é bem um homem, talvez por seres filha de uma pessoa que foi uma ideia, uma ideia/palavra forte, indestrutível, poderosa no modo como nos transformou por dentro.
Sim, claro.
A liberdade.
És filha de um homem maior. Alguém que arriscou a vida e os seus melhores anos sem esperar nada em troca – como bem escreveste na tua carta. Alguém que com o seu exemplo nos fez maiores, a nós que temos a missão de não o deixar esquecer, mas também ao país que amamos, o país que amou, um país tão paradoxal, tão cheio de contrastes, mas também com alguns faróis que nos obrigam a não perder de vista a esperança.
O teu pai é um mais luminosos.
Com o seu exemplo não temos o direito de desistir, não temos o direito de quebrar ou de achar que somos coitadinhos, não temos (ainda menos) o direito de ser menos do que aquilo que devemos ambicionar.
Salgueiro Maia foi filho único e julgo terem sido raras as memórias que tinha da mãe e tua avó. Morreu-lhe em criança, morreu-te sem que tivesses a possibilidade de a conhecer, atropelada creio…
Algumas pessoas não sabem ou imaginam o que é uma vida dura, não sabem ou calculam o que é crescer sozinho, brincar sozinho, caminhar sem uma mãe por perto, sem uma ideia de colo.
Uma vida dura, conheço quem a tenha tido.
Mas desses que conheço são raros os que não perderam a humanidade, a grandeza de se sacrificarem pelo próximo, a capacidade de amar ou a convicção numa vida limpa.
Catarina, o teu pai é também nosso. Um património da liberdade, desta liberdade que construímos mal ou bem. Ele é um símbolo, um homem que vive em mim, que caminha em mim como se existisse. Basta ouvir alguma canção que me faça recuar, basta alguma discussão política que me remeta para a ideia de liberdade, basta passar pelo mural da Universidade Nova onde a sua presença se tornou íntima, basta isso para o sentir caminhar no que sou.
Mas Catarina…
sabes…
Ele é mais teu do que nosso.
Ele é o teu pai.
Partiu vai para 20 anos. Fizeram-lhe injustiças e canalhices, mas foi tão grande que nada disso agora conta. Rigorosamente nada. Tornou-se maior do que isso, um gigante que te continuará a chamar “Catarina mau-feitio” e esse é um privilégio apenas teu, só tu o poderás ouvir na brisa de todas as tuas manhãs.
Continuarás a ser a sua menina.
Por isso, também por isso, que sorte tens minha amiga a quem nunca vi. A sorte de seres filha não da ideia, mas do homem. Apenas do homem que te fez, o homem que cresceu sem mãe, mas que foi capaz de te conceber e amar. Apenas um homem o teu pai. Que em ti é mais forte do que uma ideia, que em ti é apenas um homem a quem chamas pai, um homem que nunca conheceremos como tu conheces.