Carta aberta à Ministra da Cultura

por Cronista convidado,    17 Janeiro, 2021
Carta aberta à Ministra da Cultura
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Exma. Senhora Ministra da Cultura, Dra. Graça Fonseca, anunciou V.Exa. o Programa Garantir Cultura, um conjunto de medidas para apoiar agentes culturais nacionais no contexto de pandemia, no valor de 42 milhões de Euros. Tendo sempre presente que a cultura, a par com mais alguns sectores da economia, foi uma das atividades mais gravemente afetadas pelas medidas impostas pelo governo em virtude do combate à pandemia, não é possível aceitar este plano com a mesma  pompa e circunstância com que foi apresentado, quer em virtude do valor real da ajuda aos agentes culturais enquadrável em medidas de emergência não corresponder aos 42 milhões de Euros anunciados, quer pelos critérios utilizados para subvencionar o sector. 

O Programa Garantir Cultura é uma manobra de marketing, vil, uma armadilha que atraiçoa mais uma vez um conjunto de entidades e de profissionais obrigados a parar a sua atividade em prol do bem comum, da saúde pública, novamente esquecidos, ignorados e desconsiderados pelo ministério que V.Exa. dirige: 

1 – Atribui o seu ministério uma subvenção a fundo perdido de 1 IAS por trabalhador no sector da cultura. O valor atribuído é um atentado a todos aqueles que, repete-se, para salvaguardar a saúde pública foram obrigados a parar a sua atividade; milhares de portugueses deste sector deixaram de receber ordenado durante meses, muitos estão em situação de miséria ou de falência pessoal, despejados de suas casas, passam fome. O que espera, neste cenário dantesco, que 438,81€ resolvam? Recorda-se a Sra. Ministra, o limiar de pobreza em Portugal são 460 Euros/mês (2019). A Sra. Ministra propõe entregar a alguns destes cidadãos 438,81€, uma única vez. Miserável. Este valor é igual para todos, independentemente do ordenado que aufiram/auferiam, o que revela falta de qualquer critério equitativo para uma atribuição consciente de um subsídio. 

Esta medida, a abranger o universo anunciado pela Sra. Ministra (18000 trabalhadores), custará ao seu ministério 7,9 milhões de Euros. 

2 – Anuncia no mesmo programa um aumento de quota de música portuguesa nas rádios, para 30%. A Lei da Rádio, cuja última revisão data de 2015, no seu artigo 41  obriga a que “a programação musical dos serviços de programas radiofónicos é obrigatoriamente preenchida, em quota mínima variável de 25 % a 40 %, com música  portuguesa.” Não se compreende qual o objetivo desta medida, uma vez que nada traz de novo, muito menos algo que seja substantivo e que possa, no muito curto prazo,  ajudar artistas e agentes culturais ligados à música. O custo desta medida para o erário  público é zero.

3 – Este programa foi anunciado como sendo universal, não concursal e a fundo perdido. Induz a Sra. Ministra todos em erro: 

3.1) De acordo com o texto integrante do Garantir Cultura e cita-se “programa especialmente vocacionado para a mitigação dos impactos da crise pandémica no  sector cultural”, não há dúvida relativamente aos objetivos anunciados pelo programa, muito menos em relação aos propósitos imediatos da iniciativa do seu Ministério. 

3.2) Este programa não é universal porque não permite a nenhuma entidade ligada ao sector cultural, no curto prazo, isto é, no momento em que a intervenção e  ajuda do Estado é mais necessária, candidatar-se a qualquer tipo de subvenção. Não abre nenhuma linha de financiamento ou similar para entrega de pedidos extraordinários de apoio, motivados pela enorme diminuição de receitas provocada  pela imposição governamental de fecho, suspensão parcial ou total da atividade cultural. 

3.3) Não é a fundo perdido e embora esta possa ser uma questão de semântica, convém recordar a Sra. Ministra que, para além da medida referida no ponto 2 desta  missiva, todos os outros destinatários da “ajuda ministerial” terão que produzir  trabalho efetivo, de acordo com os projetos apresentados à DG Artes, em tempo útil,  apesar das limitações decorrentes da pandemia. Convém ainda recordar V.Exa. que a esmagadora maioria dos projetos aprovados pela DG Artes tem outras fontes de  financiamento, bastas vezes de montante superior a 50% do orçamento total do  projeto em questão e que, neste contexto, será muito difícil garantir essa parcela  fundamental para levar a bom porto determinada ideia. Estas fontes de financiamento são privadas ou resultam da venda de bilhetes em espetáculos, em campanhas semestrais ou anuais. Infere-se facilmente não ser este o momento mais favorável  para continuar a desenvolver atividade financiada pelo seu ministério de acordo com um modelo pensado e adaptado à normalidade pré-pandémica. Como é do seu  conhecimento, entidades que não consigam concluir projetos financiados pela DG  Artes no prazo definido encontra-se-ão em incumprimento, logo impedidas de voltar a concorrer no ano seguinte ou instadas a devolver as verbas atribuídas. Esta “ajuda” será uma armadilha para algumas entidades. Outros modelos de financiamento/apoio impunham-se neste momento, adaptados à profunda crise económica, social e de saúde pública de todos conhecida. 

3.4) Afirma o programa que os apoios são “não concursais”. Errado. Nos Apoios  Sustentados a DG Artes irá atribuir 12 milhões de Euros a 75 entidades elegíveis e não  apoiadas no concurso de 2021. A afirmação é clara, a forma de atribuição destes 12M€ está de acordo com o resultado do concurso já realizado pela DG Artes. Nada mais concursal. De acordo com o documento que serviu de base à sua apresentação, apenas 6 milhões de Euros serão imputáveis ao orçamento deste ano. 

3.5) Atribuirá a DG Artes mais 1 milhão de Euros para apoiar as 12 entidades parcialmente apoiadas no mesmo concurso, mesma lógica, mesma forma de atribuição, ou seja, de acordo com o resultado de um concurso já realizado.

3.6) Nos concursos bienais e quadrienais, idem, renova a DG Artes a 186  entidades, para o período relativo a 2022 (sem qualquer despesa imediata para o seu  ministério) a subvenção atribuída por concurso anterior. Afirma-se, estas subvenções resultam da execução normal do orçamento da DG Artes. 

3.7) No apoio a projetos, 368 entidades irão receber o apoio que não lhes havia sido atribuído de acordo com o resultado do concurso realizado em 2020. Apesar de  elegíveis, não existia dotação orçamental para financiar estes projetos. Mais uma vez, é concursal e a atribuição de apoio resulta de forma direta da pontuação obtida no referido concurso. Importa em 8,4 milhões de Euros. 

3.8) Se dúvida ainda persistir relativamente à forma de atribuição de apoios a entidades culturais no Programa Garantir Cultura, são excluídas da possibilidade de  receber qualquer apoio todas as entidades que concorreram no Concurso Apoio a  Projetos, mas que, apesar de terem entregue uma candidatura válida, não obtiveram a pontuação mínima para serem consideradas elegíveis, sabendo-se que os critérios de elegibilidade são, como em qualquer concurso, subjetivos. A forma de exclusão é  concursal, com base nos resultados do último concurso, liminarmente. Note que, em  muitos casos, apenas 0.5 pontos percentuais separam uma candidatura elegível de uma não elegível. Demasiado ténue para a situação de grave crise do sector. 

3.9) Convém referir que no Concurso Apoio a Projetos – Criação e Edição, por decisão da DG Artes de 27 de Novembro de 2020, foi declarada a dispensa da fase de  audiência dos interessados no dito procedimento nos domínios da Criação e Edição, o que representou claramente uma diminuição da possibilidade das candidaturas interessadas poderem contestar a pontuação que lhes havia sido atribuída. 

São muitíssimo duvidosos os critérios que escolheu utilizar para pagar subvenções a entidades culturais sob a forma encapotada de ajuda de emergência. Ao suprimir  concursos futuros por renovação direta e antecipada de subsídios para 2022, o Ministério da Cultura impede, de forma consciente e dolosa, a possibilidade de todos os agentes culturais se voltarem a candidatar em patamar de igualdade a fundos estruturais durante um ano, em diversos concursos. 

Por outro lado, ao atribuir, de acordo com os resultados de concursos já fechados e cujos critérios de análise nenhuma ligação tiveram com o momento social, económico  e financeiro atual, suplementos ou subvenções a entidades não contempladas, mas elegíveis, o Ministério da Cultura promove uma clara disparidade de oportunidades  entre agentes culturais, incorrendo num erro grave, ao decidir que entidades apoiar e  como apoiar essas mesmas entidades. Gera incompreensíveis desigualdades, não  apoiando de facto nenhuma entidade em virtude daquilo que a crise pandémica gerou:  perda de receita. Na situação atual e tal como acontece em todos os outros setores da  economia que estão a receber ajudas estatais para subsistir, o único critério justo,  aglutinador e absolutamente imparcial para atribuir subvenções estatais é o da quebra  de receita. Deveria a Sra. Ministra ter acautelado verba adequada para as entidades culturais serem apoiadas em função da quebra de receita registada pela Autoridade 

Tributária em períodos homólogos, ainda que, ao contrário do que foi exigido a todos os outros intervenientes económicos, fosse necessário produzir algo para receber o montante justamente atribuído. 

Faz a Sra. Ministra e o seu Ministério um excelente negócio, como nenhum dos seus pares conseguiu fazer: 

a) Alega ter um programa específico de ajuda ao sector da cultura, por este ter  sido um dos mais afetados pela crise pandémica, mas decide V.Exa. quem ajuda  e como ajuda, sem qualquer critério de relação com as consequências da crise pandémica, como se impunha, especificamente a quebra de receita. 

b) Para além de diluir ao longo do ano de 2021 as subvenções a pagar, as mesmas não chegam a 24,9 milhões de Euros, meros 4% no orçamento total da cultura  Cultura (563,9 milhões de euros em 2020). 

c) Ao apoiar projetos elegíveis, mas que não foram apoiados apenas e só por falta de dotação orçamental do seu Ministério, prova a Sra. Ministra que afinal é  possível apoiar mais cultura em Portugal. 

d) Ao contrário do que se passa com os apoios de emergência concedidos a todos os outros sectores da economia para minimizar o impacto desta crise, na cultura as entidades apoiadas têm que produzir projetos devolvendo arte à comunidade, ou seja, em nada estão a ser apoiadas no que a apoios de emergência concerne, para mitigar os efeitos da Covid-19. Imagine-se apoiar a restauração através do Apoiar Restauração, obrigando as empresas do sector a servir refeições à comunidade, por via de terem tido acesso a uma ajuda de emergência. Inqualificável, gritante segregação dos agentes culturais. 

Repete-se o erro criado com o primeiro programa de ajuda de emergência gerido pelo GEPAC, em que se utilizou o mesmo modus operandi, exigindo trabalho a quem  recorreu a ajudas de emergência. Contudo, nessa primeira versão, teve o Ministério da Cultura o cuidado de contemplar apenas entidades que não tinham recebido do Estado Português outras subvenções, evitando algumas injustiças. No programa agora apresentado nem sequer houve esse cuidado. 

Correto seria criar uma dotação orçamental e disponibilizar a mesma através de um instrumento semelhante ao Apoiar Restauração, tendo como critério a perda de  receita. Como deverá saber, em virtude da grave situação em que também se encontra a restauração, os programas Apoiar.pt e Apoiar Restauração são cumulativos, logo um programa semelhante destinado em exclusivo aos agentes culturais faria todo o sentido, cumulativamente com o Apoiar.pt 

O valor total real de falsas “ajudas de emergência” ao sector cultural previsto neste  programa é de 24,9 milhões de Euros, esforço financeiro diluído ao longo do exercício de 2021, uma vez que boa parte destas verbas será transferida para os seus beneficiários ao longo deste ano em virtude do prazo temporal de abertura de  candidaturas. (Todas as subvenções futuras constantes deste programa, excetuando o apoio referido no ponto 2 são também concursais).

As restantes medidas anunciadas no Programa Garantir Cultura são medidas decorrentes da normal atividade do Ministério da Cultura e da DG Artes, não tendo  qualquer peso financeiro imediato ou extraordinário na execução orçamental, nem do Ministério da Cultura, nem em nenhuma das entidades que do mesmo dependem. 

Lamenta-se a manobra de marketing, a falsidade do valor apresentado como valor global de ajuda ao sector, são falsos os 42 milhões de Euros no contexto e  funcionalidade com que são propalados e, pior, a total ausência de um critério justo e correlacionado com os prejuízos decorrentes das medidas que obrigaram a cultura a  diminuir ou mesmo a parar a sua atividade. Mais uma vez, a disponibilidade do Ministério da Cultura e do Governo Português para compensar de forma real os agentes culturais que, em prol do bem comum e da saúde pública foram obrigados a fechar, impossibilitados de prover a si e aos seus, é nula. Mais grave, a cultura é o  único sector da sociedade portuguesa em que subvenções ditas de emergência têm que ser transformadas em programação cultural e artística, ainda que a DG Artes não  financie a 100% nenhum dos projetos agora pretensamente apoiados. 

Nada mais arbitrário, prepotente e desfasado da duríssima realidade pandémica. Questiona-se a constitucionalidade das medidas, pela enorme diferença de critério de ajuda de emergência utilizado para a cultura, quando comparado com todos os outros sectores de atividade. 

Crónica de John Gallo 
John Gallo é fotógrafo de social documentário, conhecido por desenvolver projectos fotográficos que procuram fomentar na sociedade contemporânea uma reflexão sobre questões ambientais, sociais e económicas fundamentais para o desenvolvimento sustentável do planeta.

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