Carta aberta à RTP para que “Meu Caro Amigo Chico” possa ser visto

por Cronista convidado,    15 Novembro, 2021
Carta aberta à RTP para que “Meu Caro Amigo Chico” possa ser visto
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Meus caros amigos,

A memória é uma forte aliada da criação plena. A memória individual ajuda-nos a processar as experiências do passado, abrindo caminhos de pensamento que nos transformam e fazem crescer. O mesmo acontece com a memória colectiva: é através dela que se abrem diálogos plurais e reflexões com o poder de regenerar a sociedade no presente — se não a conhecermos, estaremos condicionados a repetir os mesmos erros e os mesmos padrões.

Foi assim que, em 2005, surgiu a ideia para o documentário musical Meu Caro Amigo Chico (2012), um filme de produção independente e sem qualquer financiamento público. O filme, que junta músicos portugueses e brasileiros, apresentando a relação musical entre Portugal e Brasil, foi feito através de parcerias e com o apoio generoso de toda a equipa técnica e artística, recorrendo também a algum material de arquivo da RTP, entre outros.

O filme foi exibido em festivais nacionais e internacionais desde 2012, do IndieLisboa à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e ao Festival Atlântico – Philharmonie Luxembourg, entre outros. A 25 de Abril de 2020, em contexto da pandemia de Covid-19, foi exibido extraordinariamente online, em sinal aberto e sem fins lucrativos, felicitando Chico Buarque pelo Prémio Camões. A exibição atravessou o Atlântico e alcançou mais de 60 000 espectadores e centenas de milhares de reações numa só semana. Desde então, tem sido ainda mais pedido pelo público, instituições e pela comunidade universitária dos dois países.

Planeado para estrear no canal RTP Música, que nunca chegou a existir, foi finalizado em 2012 com o princípio de que a RTP seria parceira: ficou acordada a cedência de arquivos RTP e a contrapartida da primeira janela exibição e uma futura negociação destas condições. No entanto, desde 2012, não foi mais possível a contratualização com a RTP, sendo repetidamente adiada pelo canal. Agora, a RTP já não cede os direitos do uso comercial do arquivo e abdicou do seu privilégio de exibição, contrariando o acordo inicial, demonstrando pouco ou nenhum interesse, fazendo propostas a custo zero ou de verbas simbólicas e sem acordo de arquivo.

O filme ficou suspenso, e o licenciamento das obras musicais e restantes arquivos impossibilitado. Suspensos estão também, há mais de 9 anos, o pagamento à equipa técnica, a possibilidade de recuperação de investimento, candidaturas a apoios, e outras exibições do filme fora do circuito de festivais.

Restou uma estrutura de produção fragilizada, agravada pela pandemia, reduzida aos autores do filme. Ficámos perante um dilema ético: exibir o filme, desrespeitando os profissionais da cultura nele envolvidos, ou não exibir. Sabemos da extrema importância da boa prática profissional para a estabilidade do sector cultural, por isso, temos escolhido não o exibir em defesa da equipa técnica e artística do documentário, excepto em situações extraordinárias sem fins lucrativos de celebração da Cultura (2020), e com o apoio de todos os artistas retratados.

A RTP tem a responsabilidade de atuar eticamente no mercado audiovisual, honrando os compromissos assumidos e defendendo os conteúdos de produção original em língua portuguesa. A RTP tem também um papel de apoio ao sector cultural, obrigações perante os produtores e criadores independentes de língua portuguesa, e perante os músicos. Pode e deve ser a principal aliada e interessada em manter viva e acessível a Cultura e a memória colectiva de um país — neste caso, Portugal e Brasil.

É por isso que exigimos à RTP uma rápida resolução deste impasse, que temos vivido com perplexidade, incompreensão e frustração ao longo dos anos. Pedimos à RTP que cumpra o nosso acordo inicial, autorizando a cedência do Arquivo para este projecto e negociando uma verba de exibição digna, possibilitando o licenciamento e a exibição comercial do filme a todo o seu público mundial. É para isso que fazemos filmes: para serem vistos. É também para isso que defendemos a RTP: para que os mostre e os dê a conhecer.

Pedimos à RTP que colabore activamente com a nossa comunidade e que facilite o acesso ao seu Arquivo aos mais diversos agentes da Cultura e da Educação, agora e no futuro, evitando a repetição destas situações. O Arquivo RTP é uma parte essencial da memória audiovisual do nosso país e do nosso referencial de memória colectiva, permitindo-nos manter vivo o diálogo sobre democracia, liberdade, pós-memória e cultura.

Por respeito ao trabalho dos profissionais da cultura, do cinema e audiovisual, dos músicos, autores, intérpretes e técnicos; pelo público; por esta e por outras obras em situação semelhante, manifestamos o nosso apoio a este filme.

Os autores desta carta aberta:
Joana Barra Vaz — Realizadora / Argumentista / Produtora
Maria João B. Marques — Argumentista
Rui Pires — Montador / Argumentista

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