Carta aberta (mais uma) a quem gosta de futebol
Está na moda fazer cartas abertas. Está na moda abrir uma opinião de um simples indivíduo, como tantos outros, ao público e fazer dela um repto. Eu não defino remetentes em particular, mas partilho aquilo que é a minha visão do futebol, um espetáculo que move tanto e tantos. É assustador para quem percebe aquilo que está envolvido para lá do esforço físico, mental e emocional que é inerente ao jogo jogado. É, verdadeiramente, revoltante e até angustiante olhar para os milhões que o futebol mobiliza. É importante, para quem aprecia, perceber que estas entrelinhas são as que mais pautam “a posse de bola”. Quem tem a bola e quem a faz circular são os donos daquilo que pode adquirir, mesmo se passar por cima das identidades e das forças culturais que estão subjacentes aos clubes e aos jogadores.
Desde miúdo que adoro futebol. Colecionei guias dos campeonatos sem fim, vibrava com o mercado de transferências, jogava com os meus ídolos nas consolas. Nunca gostei muito de jogar, mas sim de o ver, de analisar as estatísticas, de perceber o fenómeno por si. Desde cedo que também me identifiquei com o Sporting. Desde cedo que vibrei muito, que gritei, que chorei, que perdi o controlo da pulsação e do próprio respirar. Sim, fui fanático. Hoje em dia, passadas muitas agruras – também elas motivadas pelo que se passava dentro de linhas, mas, e em especial, pelo que se passava fora -, vejo-me como um adepto muito mais racional, que procura, mais do que o bem do Sporting, o bem do futebol e do desporto como um todo. O futebol não é a única modalidade desportiva e há tantas outras pelas quais faz sentido intervir e torná-las mais visíveis. Também elas, como o andebol, o hóquei em patins, o basquetebol, o voleibol, mas também a natação, o bilhar, a ginástica, o atletismo e muitas outras, merecem o destaque. É importante, para o peso que os clubes têm na sociedade, como uma forma até de reconhecimento internacional, que eles trabalhem para que se tornem mais valorizadas. Há valor, e muito. É importante não esquecer este cartão de visita forte, o do desporto, que também é cultural, que também define aquilo que são as nossas identidades.
Mas tudo isto para não fugir do que realmente importa: o fanatismo. Há quem perca a cabeça a ver futebol. Há quem provoque e até responda com violência. Há mortes associadas ao futebol numa história recente. Veja-se a final da Taça de Portugal, no não muito passado ano de 1996. O fanatismo ultrapassa qualquer tipo de civilidade, um valor que o futebol, na sua génese, procura transportar. O fair-play, o saber ganhar e o saber perder. A identificação com um clube é, essencialmente, uma identificação com os valores do clube e não com uma agenda que procure agir como fundamento certo para tudo e mais alguma coisa, mesmo que ultrapasse a violação da liberdade e da integridade física e moral. Chamar “filho da puta”, “cabrão”, entre outros tantos insultos, e desejar a morte ao adversário ou ao árbitro é tolerável em nome da causa do clube. Por mais que a iniquidade seja um fenómeno que se assista no futebol – a injustiça dos marcadores, que também passa para a injustiça das instâncias que tornam o futebol cada vez mais irrespirável -, cabe a nós, adeptos dos clubes, fazer com que o ambiente do futebol seja mais pacífico, onde possamos coabitar com respeito e com civismo.
O futebol é lindo, é maravilhoso, é fascinante. Ver aquele passe em profundidade que rasga uma linha defensiva. Ver aquele jogador espetacular, que parte as pernas a um defesa e que pendura os rins a outro. Aquele livre bem batido, aquele remate de meia distância direitinho ao ângulo. Ou então aquele que o guarda-redes foi buscar ao canto superior da baliza. Entre as minhas referências, lembro o Del Piero, o Trezeguet, o Nedved, o Buffon, o Raúl, o Inzaghi, o Totti, o Kahn, o Casillas, o Juninho, o Henry, o Pires, o Giggs, o Scholes, o Beckham, o Ronaldinho, o Ronaldo Fenómeno, o Eto’o, o Saviola, o Aimar, o Kluivert, o Davids. Todos eles prodígios, todos eles protagonistas de um desporto que se jogou sempre de forma intensa e, às vezes, agressiva, mas com o brio e com o respeito que permitiam que víssemos a classe e a magia a ser espalhada e aplaudíssemos de pé. Por cá, os golos do Cardozo e do Simão, ou até os do Quaresma e os do Derlei, a magia do Pedro Barbosa, a presença do Schmeichel, o rasgo do Jardel. Tudo isto fez com que Portugal se tornasse num país muito desenhado pelo futebol. Para não falar da aparição do Cristiano e de tudo que ele trouxe ao futebol. Ironicamente, também ele traz, no seu percurso, aquilo que as entrelinhas escrevem: os milhões que são mobilizados no futebol, em prol do fanatismo de tantos, mas em que tantos outros, no alto das suas poltronas, vão lucrando.
Podemos e devemos, se gostamos de futebol, rever-nos em alguns clubes, nos seus valores e até admirá-los, adorá-los e apoiá-los de forma constante. Mas isto não quer dizer que devamos passar do razoável e do racional para defender os interesses do nosso clube. Quando a culpa é sempre do árbitro ou do dito “sistema”, é um problema que acaba por ser sintomático de nunca fazermos a autoavaliação e a reflexão necessária, que nos permita ver os nossos próprios erros e, a partir do seu reconhecimento, crescer e evoluir. O futebol, com a sua tamanha influência na sociedade, poderia ser o mote para isso mesmo. No entanto, acaba por ser um caminho no qual se afogam as mágoas e se descarrega toda a tensão acumulada na semana de trabalho ou numa vida pessoal que acaba por ser menos boa.
O futebol não é maior do que a vida, é somente parte dela. É uma atividade, trabalho para uns, interesse para outros. Para nós, interessados e fascinados, não é mais do que lazer. Para os mais românticos, é arte, o que acaba por não ser mentira. O golaço, a jogada, a finta, a defesa e até o corte são uma expressão de um génio que combina o corpo e a alma. De igual modo, o futebol é um fenómeno cultural. No entanto, a nossa vida é muito mais. E ainda bem que assim é.
Em jeito de resumo de tudo que tentei apontar, deixo uma frase de um dos melhores treinadores da história do futebol, Arrigo Sacchi, que foi campeão europeu com o AC Milan: O futebol é a coisa mais importante das coisas menos importantes.