Carta Aberta: o ISCSP e a maquinização do ensino em Portugal

por Comunidade Cultura e Arte,    26 Novembro, 2018
Carta Aberta: o ISCSP e a maquinização do ensino em Portugal
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A 17 de junho de 1961, Adriano José Alves Moreira, então Ministro do Ultramar do Governo de António de Oliveira Salazar, assina a Portaria n.o 18539, que decreta a instituição do campo de trabalho de Chão Bom, onde anteriormente havia funcionado a colónia penal do Tarrafal ou, como é conhecido, Campo de Concentração do Tarrafal, na ilha de Santiago, em Cabo Verde. No mesmo ano, a 24 de agosto, assina a Portaria n.o 18702, que institui o campo de trabalho do Missombo.

Na cadeia do Tarrafal estiveram, numa primeira fase, centenas de presos políticos antifascistas e, posteriormente, após ‘61, nacionalistas africanos, que lideraram movimentos de libertação anticoloniais e independentistas, no contexto da Guerra Colonial entre o Estado português e os referidos movimentos. O local traduz-se num dos maiores símbolos de violência e opressão do Estado Novo, o período mais obscuro da história moderna portuguesa.

A 13 de novembro de 2018, no ano em que se celebra o 44o aniversário da queda do regime salazarista em Portugal, Adriano José Alves Moreira, ex-ministro desse mesmo regime, é sugerido para Sócio Honorário da Associação de Estudantes do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa – instituição pública de ensino, onde Adriano Moreira dá nome ao Auditório principal. Os Estatutos da AEISCSP prevêem que sejam exclusivamente Sócios Honorários aqueles a quem o título é atribuído “por via do mérito e através da sua atividade profissional (…) e que pelos seus atos sejam considerados dignos de tal (…)”.

Adriano Moreira não é aceite enquanto Sócio Honorário, sendo que a proposta da Associação de Estudantes não reúne uma maioria qualificada de 3/4 dos membros presentes (condição necessária prevista no artigo 24o dos Estatutos). Contudo, note-se que na votação, em Assembleia Geral, participaram 15 pessoas (numa instituição com cerca de quatro mil alunos e alunas).

Na mesma Assembleia Geral, a Associação de Estudantes sugere, também, Manuel Meirinho – atual Presidente do ISCSP – para atribuição do estatuto de Sócio Honorário, o que demonstra uma promiscuidade entre a Direção da Faculdade e aquele que deve ser o papel da Associação de Estudantes – o da defesa imparcial dos interesses dos alunos e alunas.

O presente caso remete, assim, para as seguintes questões: a tentativa de branqueamento histórico e a exaltação de um passado colonial que marca o ISCSP, antiga Escola Superior Colonial; e o contexto de apatia generalizada, ausência de sentido crítico e ação estudantil, no seio de uma faculdade de ciências sociais e políticas.

No supramencionado Instituto, decorreram, em acréscimo, os seguintes acontecimentos:

– Impedimento da realização de exames de avaliação aos estudantes em incumprimento do pagamento de propina (ano letivo 2017/2018);
– Em contexto de exame, a circulação ou leitura em voz alta da listagem de alunos/as em caso de incumprimento do pagamento de propina (ano letivo 2017/2018);
– O incumprimento do pagamento da propina “implica a suspensão da inscrição do aluno e, consequentemente, a inibição da prática de quaisquer atos curriculares, bem como a obtenção de certificação académica correspondente ao período a que a propina se refere” – o que se traduz na impossibilidade do estudante em requisitar qualquer documento junto dos serviços académicos, como por exemplo, um comprovativo de matrícula.
– No presente ano letivo (2018/2019), a folha de presenças relativa à avaliação contínua, que circula entre toda a turma no normal funcionamento das aulas, continha, para além da identificação dos/as alunos/as, a tipificação dos mesmos em aluno “normal”, “trabalhador-estudante” ou “bolseiro/candidato a bolsa” – condição que revela uma clara violação do direito à privacidade de todos os estudantes por parte dos serviços administrativos da faculdade.
– No ISCSP, os alunos/as bolseiros/as não estão isentos do pagamento de taxas de emolumento.
– Todos os estudantes – inclusive os bolseiros – pagam obrigatoriamente uma taxa caso desejem realizar exames para melhoria de nota, sendo que o preço apresenta uma tendência crescente e está fixado, desde o passado ano letivo, nos 15 euros por Unidade Curricular – o que representa um obstáculo ao aproveitamento escolar, especialmente para estudantes com situações financeiras fragilizadas. Para combater esta situação, foi realizado, por parte dos alunos, um abaixo-assinado, que obteve mais de 100 subscritores, posteriormente aprovado em Assembleia Geral no ano letivo 2017/2018, sem qualquer seguimento de relevo até à data.
– No presente ano letivo, o regime de avaliação contínua é vedado à maioria das Unidades Curriculares, por irregularidades internas – o que significa a realização obrigatória de um número excessivo de exames, no espaço de duas semanas, prejudicando o aproveitamento académico dos estudantes e marginalizando uma avaliação mais equitativa ao longo do semestre.

Em suma, a presente nota pretende:

Provocar a reflexão sobre aquele que deve ser o papel de uma Associação de Estudantes, e em como tantas vezes esta se encontra mais alienada dos interesses dos estudantes que representa, do que dos interesses dos órgãos da Direção da instituição em que se insere, distorcendo a ideia de contra-poder em que se baseia o associativismo estudantil.

Apontar a inércia estudantil dentro do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, que certamente é alargada a outras instituições de ensino, consequência tanto da insuportabilidade do ensino superior para os estudantes portugueses, o que resulta na restauração do elitismo na academia; como de falta de informação disponível para os alunos e alunas relativa ao funcionamento das estruturas institucionais, de forma a dinamizar o debate crítico e democrático.

Por fim, a presente nota pretende, igualmente, censurar a desresponsabilização da academia pública perante o exercício de manutenção de um ensino supostamente democrático e da própria democracia portuguesa, o viciamento dos órgãos de associativismo estudantil e a sua agregação ideológica ao centro de poder e administração da academia e, terminando, a relativização, em determinadas instituições públicas, da história colonial, outrora bandeira do fascismo em Portugal.

Pode ser consultado, aqui, o extrato do Diário da República original referente ao campo de trabalho de Chão Bomi.
Pode ser consultado, aqui, o extrato do Diário da República original referente ao campo de trabalho de Missombo.
Podem ser consultados, aqui, os Estatutos da Associação de Estudantes do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas:

Autoria da carta: Catarina Valente Ramalho e Inês Colaço
Subscrevem o documento: Rúben Abrantes, Xiang Zhou, Gabriela Sá de Gouveia, Gonçalo Loureiro, Ana Isabel Graça, Inês Cetra Antunes, Gonçalo Falcão Matos, Afonso da Luz Martins, Inês Cabral, Inês Jerónimo, Rita Marques, Micaela Alexandra, Mariana Afonso, Luís Carvalho, Sofia Canteiro, Marcelo Yamada, Anhelina Popovych, Beatriz Cardoso Ribeiro, Leonor Francisco Jacob, Diogo Pimentel, Rafaela Pires, Mariana Olho Azul, Mafalda Escada, João Patrocínio, Airton Cesar Monteiro, Cláudia Godinho, Laís Andrade, Andreia Quartau, Leonor Rosas, Joana Sousa, Gianluca dos Reis Vieira, Bernardo Ruivo, Inês Fernandes, Joana Rita Domingos, Beatriz Fernandes Nunes, Pedro Vidigal, Margarida Tavares, Alexandre Fernandes, Marianna D’Ippolito, Marta Vicente e Carolina Pais.

 

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