Carta ao pai

por M. J. Cruz,    31 Julho, 2017
Carta ao pai

Não sei quantas manhãs, tardes ou noites passei a pensar em ti. Não me lembro de nenhum momento especial em que pudesse dizer “tenho saudades do meu pai” ou “gosto muito do meu pai” ou a coisa mais simples: “olha o que o meu pai me deu”. Lembro-me, sim, de ver outras crianças a correr para os braços do pai que os iam buscar à escola. Lembro-me de sentir que não importava. Tinha a minha mãe e os meus avós. Isso chegava. Mas aquela picada, aquele sentimento, aquela inveja nunca desapareceu.

Como é ter um pai? Nunca respondeste à pergunta.

Lembro-me de ver um jogo de Portugal contigo ao meu lado e pouco mais tarde saíres de casa para nunca mais voltar. Dizem que é melhor um divórcio para as crianças do que submetê-las a um casamento tóxico e/ou sem amor. Eu concordaria, mas o caminho que escolheste deixou-me a pensar. Num dia, o Francisco, Manuel e a Natacha tinham um pai e noutro não. É certo que nos primeiros tempos fizeste o esforço normal de qualquer pai. Aliviavas o fardo da mãe solteira e carregavas o nosso peso ao fim de semana.

Lembro-me de irmos os três para tua casa meia dúzia de vezes, para um bom apartamento na Portela, onde dormíamos todos num quarto grande. Lembro-me de ouvir Bon Jovi numa aparelhagem enorme, de olhar pela janela e as luzes de Lisboa se acenderem enquanto a noite caía. Lembro-me de dizeres “xixa” em vez de carne, comigo ao colo, para eu comer o jantar e lembro-me dos croquetes que me compravas num restaurante na avenida João XXI, ao pé da loja do avô. É engraçado o que fica nas memórias de uma criança. Lembro-me de insistir que queria beber um pouco de cerveja e tu deixaste-me molhar o dedo e provar. O gosto era amargo e desagradável mas, naquele momento, tinha o meu pai ao lado. Lembro-me de estarmos em casa dos teus pais – nossos avós – e brincarmos com o que havia mais à mão.

Lembro-me também que a avó tinha sempre kinder para nós, embora fosse óbvio que não gostava de nos ter por lá. Lembro-me da loja do avô e do empregado, o Sr. Martins. Lembro-me de correr pelos corredores com o cheiro a verniz a inundar os meus sentidos, mas não me importava. Para mim era um mundo antigo e novo ao mesmo tempo.

E um dia isso parou. Ou foi parando – a memória engana-me. Não sei quanto tempo depois, mas foi o suficiente para deixar marca. Um dia já não estavas lá. Trabalho, talvez? Ou outra coisa, uma força mais maligna e incontrolável que te assombrava. Todos sabemos o que foi e nenhum de nós fala disso. Talvez tivesses vergonha de nos encarar.  É difícil avaliar os danos que causaste em mim e nos meus irmãos – especialmente se considerares que todos nos tornámos pessoas decentes e honrosas. Mas há uma vida paralela, uma outra cronologia em que foste um pai presente e carinhoso na qual, apesar do divórcio, nunca nos abandonaste. Gostava de visitar essa cronologia e olhar para mim mesmo aos 29 anos. Estaria melhor ou pior? O meu irmão tornar-se-ia na pessoa que mais admiro e amo na minha vida? Eu seria um escritor desempregado à procura de sucesso ou a tua presença ter-me-ia influenciado a seguir um caminho diferente? Teríamos passado as dificuldades que passámos? O estigma de sermos filhos de divórcio, sem qualquer ajuda financeira da tua parte, onde o apoio dos avós maternos foi fulcral? Teria olhado para o meu avô mais como meu pai do que tu alguma vez foste? Decerto que não.

Lembras-te que um dia me prometeste que íamos ao jogo do Benfica e eu, entusiasmado e equipado de vermelho, esperei por ti na varando do 1º DT do número 199? Tu nunca apareceste. Lembras-te de depois me telefonares com uma explicação? Disseste que a culpa foi de outra pessoa que não te avisou.

Eu lembro.

São poucas as memórias que tenho de ti. Foste aparecendo ao longo dos anos para logo depois desapareceres. Gosto de acreditar que não consegues aguentar a culpa e não tanto a responsabilidade que desempenhaste na nossa transformação em adultos, mas ambos sabemos melhor.

Tu para mim nunca deixaste de ser uma criança, atrás dos teus vícios, dos teus brinquedos, da tua realidade. Nós éramos uma distracção. Quem tem paciência para criar três filhos, especialmente três como nós?

Eu percebo. Não te perdoo, mas percebo. Quando tentaste aproximar há poucos anos e parecia que estavas a fazer um esforço genuíno para compensares erros passados, sabes qual foi a minha reacção? Fugir. Aqui estou eu a pregar-te um sermão e, no fundo, fiz exactamente o que me ensinaste a fazer. Fugi, corri o máximo que consegui e ignorei-te. Meti a cabeça na areia e não te encarei. Tornaste-te um problema que eu esperei que desaparecesse.

Sabia que não ia durar. Para quê criar expectativas para depois as deitares abaixo?

Não foi a decisão mais difícil deste mundo. Na altura tinha uma namorada com um exemplo de pai. Os olhos dela iluminavam-se quando falava dele. Tu não tinhas isso de mim. Na tua ausência, procurei figuras paternais em outras pessoas. Na verdade, imaginava todas as figuras masculinas como um pai para mim. Dava por mim a pensar “gostava de ter um pai assim”? A resposta nunca era clara, porque pai só te tinha a ti e tinha de me contentar com o que me davas. Pouco…nada.

Até aos 14 anos, quando outros interesses começaram a surgir, era o segundo melhor jogador de xadrez de Lisboa. Tu nunca estiveste lá para me congratular, por mais uma medalha ou um troféu. Era a única criança nos torneios e nas viagens organizadas pelo clube em que os meu pais nunca participavam. A mãe, porque era obrigada a trabalhar longas horas e não tinha tempo – e tu… bem, porque eras tu.

Se perguntares a qualquer um dos teus filhos – eu, o Francisco ou a Natacha – se nos fizeste falta, a resposta será um não. E todos nós estaríamos a mentir.

Escrevi há poucos dias que é difícil encararmos os nossos traumas. O efeito da tua ausência é uma sombra que paira sobre tudo o que faço e sinto. O medo de me abandonarem reflecte-se nos meus maneirismos, reacções e processo mental. Não sei até que ponto me influenciaste, é certo. Faltam-me qualificações em psicologia para isso. Talvez nada, talvez tudo. Afinal de contas, fui bem criado e considero-me uma pessoa de morais e valores fortes mas, na parte de trás da minha cabeça, tenho sempre aquela voz a martelar, a dizer-me: não és suficiente, não fazes o suficiente. Uma voz que insiste que, independentemente do que aconteça, vou acabar por desiludir as pessoas, de que não valho tanto, de que é tudo culpa minha, que fui EU ou NÓS os culpados.

Fomos?

Somos?

Fomos nós, Carlos?

Falhámos de algum modo como filhos para ti? Foi por esperar de ti o mesmo que recebíamos da nossa mãe, dos nossos avós? Amor, carinho e, acima de tudo, presença? Foi isso?

Eu sei que não.

Tento não transpor isso para o meu dia-a-dia, mas sei que nem sempre consigo. A culpa, não a meto toda sobre os teus ombros. Afinal de contas, eu é que já devia estar preparado. Se não sou bom o suficiente para o meu pai, como é que hei-de ser bom o suficiente para outra pessoa qualquer? Para uma namorada? Para um amigo? Para um emprego? Ou até para mim mesmo?

Na adolescência compensei as minhas limitações com uma falsa arrogância e confiança fingida. Não durou muito tempo. Na universidade aprendi a verdade sobre mim – da maneira mais difícil. Um ser frágil demasiado ansioso para agradar e capaz de se perder nas outras pessoas e, ironicamente, que ao mesmo tempo receia reviver qualquer tipo de abandono – fechado em si mesmo, para não se magoar.

Desde então que venho tentando corrigir tudo isto, mas é um trabalho árduo. Sei que não sou especial ou único neste aspecto. Há pessoas com experiências piores. Isto não é um lamentar, mas a única história que posso contar é a minha. Só posso escrever o que sei e o que sinto ou deixei de sentir.

Não tenho perguntas para ti. Nem um simples “porquê?”. Há perguntas que não merecem resposta e, embora o título deste texto seja Carta ao Pai – numa homenagem a Kafka –, esta é uma carta para mim próprio. Palavras com um fim terapêutico e nada mais.

Não te culpo por seres como és. Para mim és apenas uma criança irresponsável que não sabe o que fazer quando é apanhado a fazer merda. É mais fácil enterrar a cabeça na areia e fingir que os problemas não existem.

Tinhas três filhos que te amavam. Agora tens três estranhos, que só usam o apelido “Cruz” por respeito ao teu pai e à forma como eles os ajudou.

Valeu a pena?

Para mim valeu. Obrigado por me ensinares uma valiosa lição. Um dia, se acontecer, sei que vou ser um bom pai. Não precisamos de ser iguais aos nossos pais e eu tenho a certeza de que não vou ser igual a ti.

Deste-nos um nome e ficaste feliz com isso. Eu gosto. Manuel João… gostas também? Suponho que sim.

Espero que um dia leias isto e percebas que estamos bem, apesar de tudo. Obrigado, “pai”, por não fazeres parte da nossa vida. Todos nós te perdoamos, mas não precisamos de ti.

Já não.

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