‘Cartas da Guerra’, um filme de portentoso conteúdo

por João Estróia Vieira,    24 Agosto, 2016
‘Cartas da Guerra’, um filme de portentoso conteúdo
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Com ante-estreia marcada para esta quarta-feira, Cartas da Guerra, de Ivo M. Ferreira chega aos cinemas dia 1 de Setembro (mais cedo este ano, o filme foi também exibido no Indielisboa) distribuído pel’O Som e a Fúria. A adaptação por parte do realizador da correspondência que o então alferes médico António Lobo Antunes (Miguel Nunes) mantinha com a sua mulher, Maria José (Margarida Vila-Nova), durante um contexto histórico de pesada importância como foi o da Guerra Colonial.

O filme, que esteve em competição no Festival de Berlim, presta-se a dar “corpo” às cartas do escritor, então em Angola, que mais tarde deram origem a D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto.

Cartas da Guerra é um poderoso exercício de negação a uma possível contemplação sem significado. O preto e branco da imagem deste filme de Ivo M. Ferreira existe como recusa a mais que isso, e a mais do que um simples contexto histórico. Se quisermos, não indo tão longe como João César Monteiro foi na sua interventiva e “negra” Branca de Neve, a imagem é aqui um constatar do minguar do significado literal visual, invés do significado no interior do ser da inóspita guerra, pedindo até por vezes um “porque não?” a escutar apenas as carregadas palavras de António Lobo Antunes, cobertas e pesadas da agonizante existência de alguém que não sabe o como nem o porquê de estar “ali” (um “ali” tão familiar a tanta gente).

Pausado e delicado, o filme respeita os seus tempos e os seus silêncios, criando assim uma atmosfera própria e singular. É essa atmosfera que cria a ambiance de uma obra cuja sua força está aliada ao romantismo inerente das cartas que António, um soldado cujo seu coração ficou no porto de partida, e que agora em terras desconhecidas se encontrava deslocado e desligado de qualquer sentimento de pertença ou de propósito, escrevia à sua mulher.

Mais que isso, o filme de Ivo M. Ferreira sabe de toda a dificuldade que é colocar em ecrã algo que só a mente de cada um pode dar imagem (uma que unicamente António Lobo Antunes saberá da sua veracidade). Reconhecendo isso à partida – e bem – Cartas da Guerra agiganta-se como cinema da voz e da alma, com real foco no que é escrito e lido sobre a voz do talentoso e sóbrio Miguel Nunes. E como é injusto pedir a alguém que seja António Lobo Antunes, ainda que em fase jovem, mas já com um peso tão grande sobre si.

Por ter sabido tirar o melhor de si, Cartas da Guerra é um triunfo de cinema sem fronteiras espaciais ou temporais, de importância histórica singular derivada do colonialismo. Cinema adulto que nada tem a provar, ciente do que é e capaz de se negar a pisar terrenos movediços. A isso a obra exigia, e não há muito melhor que um filme que sabe respeitar e elevar da melhor forma o seu próprio portentoso conteúdo.

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