Casas de transição: de uma reabilitação dos reclusos para uma reabilitação do sistema 

por Diana Ribeiro,    2 Maio, 2022
Casas de transição: de uma reabilitação dos reclusos para uma reabilitação do sistema 
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De uma teoria progressista a uma prática retrógrada.

A legislação penal portuguesa carateriza-se pelo seu pioneirismo e vanguardismo, quando em comparação com os restantes ordenamentos jurídicos, sendo uma das mais progressistas em vigor.
Tendo em conta que a evolução do direito penal tem sido marcada, a nível internacional, pela redirecção do foco no punitivismo para a reabilitação e reinserção social, podemos afirmar que Portugal esteve sempre na vanguarda no que toca à modernização da lei. 

Se pensarmos no Direito Penal como um espectro em que, num extremo temos o punitivismo retributivo e vingativo e o encarceramento em massa e no outro temos o abolicionismo penal, ao centro teríamos uma solução que procuraria penalizar, mas em vez de vingar, procuraria reabilitar. Tendo isto em mente, Portugal tem estado no centro do espectro, apresentando como finalidade da pena a ressocialização do condenado.

Contudo, os dados estatísticos e os estudos prisionais realizados nos últimos anos mostram que a realidade prática não é o reflexo da lei positivada — o sistema jurídico português inicia-se numa teoria progressista e acaba numa prática retrógrada.

Um dos maiores problemas com que o nosso sistema se debate prende-se com a sobrelotação nos estabelecimentos prisionais, o que acaba por desencadear um efeito dominó: a sobrelotação prisional agrava outros problemas estruturais, como a (in)segurança dos edifícios, as más condições de higiene e a definição e execução, para todos os reclusos, de programas credíveis de reinserção social — incluindo o trabalho, educação e relações com o exterior —, o que coloca em causa direitos fundamentais das pessoas reclusas, tendo motivado a mobilização de tribunais europeus contra o sistema penitenciário português.

A título de exemplo da inexistência de condições, foi apresentada recentemente uma queixa onde se relata a falta de sanitas nas celas. Para satisfazerem as suas necessidades fisiológicas precisam de recorrer a um balde — o que coloca óbvias questões de dignidade, a que acrescem preocupações de higiene.

Segundo os mais recentes dados estatísticos das Estatísticas Penais Anuais do Conselho Europeu, Portugal posiciona-se na lista de países que têm uma população prisional 25% acima da média da União Europeia. Analisando as estatísticas prisionais de 2021 da Direção Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, verifica-se que num elevado número de estabelecimentos prisionais o número de reclusos existentes ultrapassa ou iguala a lotação, e mesmo os que não igualam ou ultrapassam estão muito próximos da capacidade máxima.

Na teoria, um dos fins da pena que o sistema prisional deve seguir e que ficou estabelecido no anteprojeto da Reforma do Sistema Prisional de 2004 é a individualização e especialização. Enunciando como medida concreta a adotar na execução da reforma “a criação de condições efetivas para a generalidade a todos os reclusos condenados do plano individual de readaptação social”.

Procura-se planear, individualmente, a readaptação de cada recluso à sociedade. Ora, não fica muito difícil de perceber que as palavras “individualização” e “sobrelotação” não têm uma relação de coexistência amigável. Face ao elevado número de condenados, há falta de recursos humanos para a elaboração destes planos, tornando-se quase impossível o estreitamento do foco no indivíduo. Os reclusos não têm a oportunidade de reabilitar, o processo de ressocialização e reinserção são, consequente e inevitavelmente, afetados.

Adicionalmente, um outro problema que surge com a sobrelotação das prisões é o aumento das despesas públicas no setor. Em Portugal, os 49 estabelecimentos prisionais custam, segundo o Concelho Europeu, mais de 250 milhões de euros todos os anos ao Orçamento de Estado.
No que diz respeito à reincidência criminal, apesar da falta de estudos, os dados oficiais mais recentes da Provedoria da Justiça apontam para uma taxa de reincidência na população masculina de 51% e de 15% na população feminina. Porém, em 2019, um artigo publicado pelo Diário de Notícias apontava para uma taxa de reincidência de 75%. 

Não podemos ignorar o facto de que a face mais visível da não efetividade de um sistema prisional e de reinserção social é a reincidência criminal. A privação da liberdade de seres humanos torna-se, assim, numa solução artificial a curto prazo. A vontade dos cidadãos de segurança pública fica por satisfazer.

Surge a necessidade de se pensar numa solução e para isso temos de olhar para a génese do problema da reincidência: a sobrelotação prisional e consequente não reabilitação e ressocialização dos reclusos. 

De uma prática retrógrada a um novo paradigma penitenciário

Se olharmos para a história, podemos verificar que Portugal foi, como já foi referido anteriormente, pioneiro na adoção e criação de políticas públicas ditas progressistas. Contudo, podemos concluir, também, que muitas das vezes Portugal ficou numa posição mais conservadora e ponderada a assistir, confortavelmente, ao pioneirismo de outros países e a ver se esse progressismo tinha, efetivamente, sucesso — posição esta que tem o seu quê de esperteza. Como já é tendência, a história repete-se, e chegou o momento de Portugal sair da cadeira da audiência e juntar-se aos atores. Chegou a altura de solucionar o problema da sobrelotação prisional e essa solução passa por encontrar uma alternativa às penas de privação de liberdade. 

Dentro das fronteiras da Europa temos dois países precursores no que à criação de novos paradigmas penitenciários diz respeito, sendo eles, a Bélgica e a Noruega. Em 2016, o ministro da justiça belga apresentou um plano para o sistema prisional com o objetivo de criar alternativas à maneira tradicional de atuação das entidades do sistema penitenciário. Este plano assenta em 4 pilares, sendo um deles uma diferenciada política de detenção — as casas de transição — um espaço vocacionado para preparar a transição para a liberdade, onde residem pessoas que cumprem uma pena de prisão, nos 18 meses que antecedem a liberdade condicional. Durante a sua estadia, cada prisioneiro é apoiado por um especialista para se preparar para se ajustar à vida após a prisão. As componentes chave do plano de reintegração são: habitação, trabalho, estabelecimento de relações e necessidade de auto-realização. O objetivo é que os prisioneiros sejam auto-suficientes numa sociedade cada vez mais complexa e interdependente.

Cada prisioneiro tem que lavar a sua própria roupa e é responsável por preparar as suas próprias refeições. Todos eles têm um quarto que oferece total privacidade, mas as tarefas do dia a dia acontecem nas áreas comuns. O senso de comunidade dos reclusos (sim, continuam a sê-lo)  é estimulado dessa forma permitindo-lhes, também, a aprenderem a assumir responsabilidades. 

Já na Noruega, o modelo adotado é semelhante com uma pequena mas significativa diferença: a rotina dos residentes está sob a alçada de um princípio de normalidade: a ideia é que as rotinas de um residente se aproximem tanto quanto possível das normais rotinas de um cidadão livre. Por esse motivo, todos os residentes trabalham ou estudam, sendo‑lhes prestado apoio pela equipa nesse sentido. Os residentes estão autorizados a sair da casa para efeitos de trabalho ou estudo e os horários individuais de regresso devem ser rigorosamente cumpridos por cada residente. Às 24 horas, há um recolher obrigatório nos quartos individuais.

As casas de transição não possibilitam resolver apenas o problema da sobrelotação prisional, como também, o dos elevados custos e despesas públicas no setor. Os custos financeiros de uma casa de transição para a liberdade são significativamente inferiores aos custos de uma prisão. Desde logo, porque os residentes de uma casa, auferindo salários nos seus empregos, suportam os custos de alimentação, transportes e de estadia (pagando uma renda simbólica pela sua vaga na casa), assim readquirindo também competências de gestão de um orçamento pessoal. De acordo com dados publicados, em 2019, o custo anual médio por pessoa reclusa numa prisão de alta segurança norueguesa excedia os 106.000,00€. Por sua vez, o custo médio anual médio por pessoa reclusa numa casa de transição não atingia os 74.000,0€. Como foi dito acima, a eficácia do sistema reflete-se na taxa de reincidência criminal e, perante este cenário, os números falam por si: de acordo com o Conselho Europeu, a Noruega apresenta uma taxa de 20% de reincidência criminal.

Tendo em conta que apenas reclusos com a possibilidade de liberdade condicional podem ter acesso às casas de transição, presume-se que se tratam de  condenados que cometeram crimes que não são de especial censurabilidade, dado que a liberdade condicional só é concedida a um recluso condenado a pena de prisão durante um período não superior a 5 anos. Segundo o relatório das Estatísticas Penais Anuais de 2021 do Conselho Europeu, 3614 reclusos foram condenados a uma pena igual ou inferior a 5 anos. Conforme os dados fornecidos pelas estatísticas de 2021 da DGRSP, 1356 reclusos saíram em liberdade condicional. 1356 reclusos que ficaram a ocupar uma cela até poderem sair em liberdade condicional, quando podiam libertar espaço 18 meses antes dessa liberdade ser concedida, diminuindo, assim, o tempo de duração da pena dentro da prisão.

A exequibilidade de uma remodelação do sistema prisional português e a criação de casas de transição num futuro próximo é, no entanto, improvável. Há vários fatores sociais, económicos e culturais que distinguem a realidade portuguesa da realidade belga ou norueguesa. Adicionalmente, Portugal atravessa uma grave crise económica e social que dificulta o desenvolvimento e implementação de novas políticas relativas ao sistema prisional. Porém, tudo depende do raciocínio que optamos por fazer. Se nos focarmos num raciocínio a curto prazo, estamos a auto condenar-nos a um miopismo mental onde só vemos o investimento inicial. Se, contrariamente, adotarmos um raciocínio a longo prazo, conseguiríamos percepcionar os resultados futuros do sacrifício comum de um investimento inicial: a diminuição da despesa pública. 

Com a adoção destas casas, o efeito dominó era revertido. Sem sobrelotação prisional ficava então aberta a possibilidade de melhoria das condições nos estabelecimentos prisionais, com esta melhoria de condições criava-se um ambiente mais propício à reabilitação e ressocialização do recluso, com esta reabilitação seria visível a diminuição da taxa de reincidência e consequente aumento da segurança pública. Os fins da pena seriam atingidos, a vontade dos cidadãos de segurança também, os direitos dos reclusos ficariam melhor assegurados, pois também eles têm o direito ao futuro. A teoria progressista passava a refletir-se numa prática, também ela, progressista.

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