“Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”: a busca da justiça continua
Este artigo pode conter spoilers.
O povo, personagem paradoxalmente principal e ausente em Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, acertadamente confia poderes curandeiros ao tempo. Nesse modelar poder cabe a potencial virtualidade de digerir — e a digestão de Catarina e a Beleza de Matar Fascistas é longa, ruminante e não se compadece com escritos rápidos.
Começa logo pelo fenómeno raro de motivar uma ida ao teatro a pensar em música, e a cumulativa circunstância de ir a uma sessão de uma peça que, por mais que se procure, parece estar irremediavelmente esgotada. E por mais isolado que se viva não há quem não tenha escutado um relato de um final aceso, ou não tenha lido uma crítica que se contradiz com a que lhe é imediatamente anterior. Passando-se isto num país em que ir ao teatro ainda é luxo de uns poucos, mas onde um povo por um breve momento se reúne, em massa, para ir ver uma peça, o evento torna-se numa efeméride de periodicidade quase cósmica.
Passado muito tempo, que não chega a ser demasiado sob pena de traição para com o texto que vi encenado no Teatro Nacional de São João, lá se foi ver, com a ressonância prévia e melódica do Zeca e do seu Cantar Alentejano, canção dedicada a Catarina Eufémia e que precede, no Cantigas de Maio (1971), essa senha para a liberdade coletiva que vai pelo nome de Grândola, Vila Morena.
A peça começa com o imperativo velado, descendente de Sophia, de honrar a lição de Catarina de “fazer frente” a que se acrescenta a lembrança de Quem viu morrer Catarina/ Não perdoa a quem matou, recordando o tempo passado, assustadoramente vislumbrável no futuro, em que Baleizão não foi Grândola. Tudo isso motiva uma família de homónimos a levar a cabo um ritual de matança de fascistas, quando completam 26 anos — a idade fatídica com que foi morta Catarina Eufémia.
Num texto bem composto, com referências densas e que, a espaços, exploram com mestria o público para criar uma espécie de “cão de Pavlov” aplicado ao teatro, Tiago Rodrigues, o consagrado dramaturgo português (de cujo trabalho denodo permitiu tornar-se o primeiro diretor não-francês do Festiva de Avignon) lança as bases para um dilema profundo das nossas sociedades: com que ferramentas (e limites) responder ao assombroso regresso do Mundo de Ontem de fascismos?
A peça prossegue com o consenso alargado entre Catarinas a ser abalado por uma Catarina que, de forma laboriosa, faz crescer o espinhoso dilema entre a ação e a inação, entre a participação no ritual e a sua obstaculização, e entre o matar e não matar. Toda a peça é um convite à reflexão, mais do que uma resposta dogmática, que o título pode sugerir, mas que a prática desmente. Toda a peça é o tal combate, com contornos quase psicanalíticos, entre “uma mão cerrada de combatividade e uma mão aberta no sentido do diálogo, no respeito pelo outro e de uma reflexão em conjunto” que o encenador em várias ocasiões referiu sentir.
Apesar de patente por toda a peça, o texto de Tiago Rodrigues é melhor quando larga uma dialética subtil e a substitui por uma dialética torrencial, como no diálogo entre Catarina — Mãe (Isabel Abreu) e Catarina — Filha (Carolina Passos Sousa), de contraponto afiado, e que abre espaço para a constatação de que a razão, enquanto exercício de discernimento, é incompatível com práticas, rituais e tradições familiares obtusas. Esta cena é o confronto derradeiro entre os que acham que os chaparros plantados contra a semente da razão murcham cedo e os que acham que quem está disposto a morrer por ideias deve estar disposto a matar por elas. Quando deste confronto resultar uma resposta definitiva e impassível de contra-argumentação, o universo terá descoberto a moeda de reserva da essência humana.
A peça prossegue de mão dada com o destino das democracias, que se enfraquecem e silenciam perante os abandonos e os suicídios, as traições e as consequências resultantes da incapacidade de diálogo, os descontentamentos que se menorizam, as distorções que se ignoram e as desigualdades que se toleram. Da entropia brota um fascista vitorioso — sobrevivente, dir-se-á melhor até, porque em matérias de fascismo a pedra angular é a sobrevivência. Ergue-se considerando-se salvífico e levanta-se a voz de um messianismo que crê ser gnose, mas que nunca ultrapassou a submissão a uma ponderação de humanismo, tolerância e pluralismo.
O derradeiro momento da peça, que Romeu Costa abrilhanta, ocorre perante um público em convulsão que desrespeita o silêncio, que o moldou, e que se sente legitimado a completar um texto, parcialmente convencido de que esta peça é semelhante de By Heart e que só termina quando 10 espectadores — aqui todos — sigam o grito dos mais intempestivos: “Mata-o!”.
Essa convulsão é prelúdio da mais assustadora das revelações desta peça: a de existir uma distribuição vasta da visceralidade, que compra a ilusão de que assassinar o homem é forma de matar a ideia. Não há mescla possível entre a condenação, necessária e justa, do discurso e da ideia; e o arregimentar para uma ação consequente por via da violência, que padece, em democracia, da mesma fundamentação racional e humanista que pretende contrapor. Entre nós, sonegar existência de uma multitude de níveis caindo numa falsa dicotomia entre a possibilidade e o remorso é uma traição que não nos podemos permitir, mesmo que em nós conviva um vazio de resposta concreta ou que o que defendamos seja perfeitamente etéreo. A própria peça, como convite dialético, é a precisa antítese desse reducionismo.
Se a parte final da peça pede reação, importa não olvidar que o Teatro é um convite circunscrito para a vida e que a assimilação do comportamento com que se participa nessa atuação pode ser projetado para um plano maior. É a pensar nesse plano maior — a vida e o futuro — que rapidamente percebemos que os que carregam certezas matadoras aniquilaram a metodologia da dúvida que permite afirmar que não passarão!, um credo afirmativo mas que deixa um subtil lastro de dúvida para que ninguém durma nessa busca pela justiça que Sophia nos diz continuar. O apavorante poder de Catarina e a Beleza de Matar Fascistas relaciona-se com a assunção de que as dificuldades desse caminho são maiores do que julgávamos. E que torna incontornável não achar que, como Brecht, vivemos em tempos negros.
Crónica de Tiago Cunha.
O Tiago estuda direito, na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, é socialista, republicano, laico e portista.