“Causeway”, de Lila Neugebauer: um filme sobre pequenos passos
Este artigo pode conter spoilers. O filme encontra-se disponível na plataforma de streaming Apple TV.
Lynsey (Jeniffer Lawrence) é uma militar que regressa à sua terra natal com profundas mazelas neurológicas provocadas por duas explosões após cumprir serviço no Afeganistão. A protagonista, que enfrenta, agora, graves crises de ansiedade, problemas de memória e coordenação motora, fica ao cuidado da simpática Sharon (Jayne Houdyshell) até regressar à casa da sua mãe, Gloria (Linda Emond) que, por sua vez, enfrenta problemas de alcoolismo e que não lhe proporciona o melhor ambiente para recuperação
“Causeway” é um drama com aspirações buddy film que acaba a tornar-se numa tentativa frustrada de ensaio sobre trauma e angústia quotidiana. É um filme decente, repleto de boas intenções, performances e com potencial em profundidade de personagens e carga dramática, um chamado quase lá.
O enfoque central da narrativa é a amizade que Lysney estabelece com James (Brian Tyree Henry), um mecânico simpático e carismático. Lila Neugebauer, argumentista e realizadora do filme, joga com esta amizade para nos falar de relações pessoais e da construção de uma amizade com algum distanciamento e indolência, uma ambiguidade interessante, que contraria algumas convenções de género, mas que leva o tom a comprometer a catarse. O filme faz um apelo ao companheirismo e entrega uns bons momentos buddy film, mas deixa, igualmente, o espectador irrealizado pela falta de algum teor dramático no conflito central. Não podia ser de outra forma, dado o ponto de partida e o tom do enredo, mas não deixa de prejudicar a integridade narrativa.
Jennifer Lawrence mantém quase sempre a mesma expressão facial, fechada e carregada. Justifica-se até certo ponto do enredo, o problema é depois, quando, até à última cena, não esboça mais que apatia. A atriz tornou-se particularmente voraz a interpretar este tipo de papéis, no entanto, a performance perde-se na ambiguidade desta personagem, que refere ter um grande desejo em regressar ao Afeganistão, mas não o demostra com ações, ficando-se pela apetência.
Já James, revela rasgos de uma personagem-tipo, repleta de boas maneiras e de um espírito genuíno. Possuí um passado conturbado e balbucia palavras com timbre profundo, encorpado pelos efeitos do álcool e da marijuana. Um caráter clichê, salvo pela brilhante execução de Brian Tyree Henry que, nos últimos anos, tem vindo a mostrar uma grande versatilidade enquanto ator, operando, tanto na comédia, como no drama, ou mesmo ambos em simultâneo sem parecer requerer grande esforço, a série Atlanta é um bom exemplo disso e ‘Causeway’ não abre exceção.
Existem mais umas quantas personagens perdidas, sem grande destaque no ecrã, mas que são forças indispensáveis à vida quotidiana e carácter de Lynsey. O irmão, preso, com um passado de toxicodependência; o médico neurologista, preocupado com o estado de saúde mental da protagonista; a mãe, com um problema de alcoolismo, que procura reforçar alguma da sua ligação à filha; e o namorado da mãe, que nunca chegamos a conhecer, mas pontua uma ou outra conversa.
A direção de fotografia, que ficou a cargo de Diego García, não acresce nem retira ao essencial do filme, encontra-se lá, indolente, e a ausência de energia audiovisual torna-se bastante evidente logo após as cenas iniciais. Esta ataraxia cinematográfica acaba por passar despercebida, contrariada por uma montagem que não peca em ritmo e em performances bastante decentes. Traços característicos de uma realizadora com ótimas intenções, sensível a uma bom enredo, perita em encenação para teatro, que tenta dar os primeiros passos na sétima arte.
“Causeway”, para um filme que começa no midpoint e termina no início do terceiro ato, ainda chega a permitir uma pequena jornada emocional autêntica e algo invulgar. É compreensível compactar desta forma a estrutura de enredo, visto que acrescenta mais cenas seria estragar o carácter da narrativa, cujo único problema é, precisamente, a falta de carácter.