Chama-me pelo meu nome
“Sois a pessoa certa para o fazer. Estou convicto que ficará excelente. Como nos habituou: uma autêntica obra-prima, senhor Leandro!”.
“Leonardo”, corrijo, “Leonardo”. O homem corou e pediu desculpas, envergonhado pelo engano. “Não tem problema”, respondi, “é um erro muito comum”. “Já quase respondo por esse nome” gracejei pela enésima vez, sempre cínico, odiando o facto de me trocarem a identidade desde que me conheço.
A primeira memória é de criança: brincava com os amigos atirando pedras aos do bairro vizinho. Já nessa altura era dono de uma pontaria exímia. Abri a cabeça ao Antonio, filho do sapateiro, com um arremesso impecável. Por entre o rio de sangue que brotava da sua pequena face, tentei abrir-lhe o rasgão na testa para espreitar o que tinha dentro. Um grito estridente foi a banda sonora da minha primeira experiência anatómica e, com ele, vieram os adultos a correr. Vários dedinhos indicadores se apontaram a mim acompanhados com acusações erróneas: “Foi o Leonel!” ou “Quem atirou a pedra? Aquele ali, o Lourivaldo!”.
A todas respondi com uma hombridade de lágrimas e raiva:
— L E O N A R D O!
No início da adolescência, quiçá pelos meus longos cabelos loiros, até “Leonor” me chamaram. E, apesar dos estudos, dos anos de prática, de me considerar um dos melhores nos meus labores, por mais que tenha dedicado a vida às mais diversas artes, as pessoas insistem em apelidar-me de Leopoldo, Leôncio, Lourenço, Eduardo, mas também outros nomes que nem sequer se assemelham em sílabas ou sons. Por alguma razão, nunca ninguém memoriza o meu nome. Ainda há dias, estava a desenhar no jardim quando apareceu um tipo que espreitou o papel, começou a elogiar o desenho, comentou-o, e, admirado, quis saber do que se tratava. Apresentou-se e eu retribuí. Estivemos horas a debater vários assuntos; do desenho passámos à pintura, escultura, anatomia, até de arquitetura romana falámos. Um homem que transparecia uma cultura considerável, mas que, tal como muitos, acabou por se despedir com o engano do costume. Não fui capaz de me conter: “Estimado amigo, vossa excelência consegue dizer ‘Vitruviano’ sem o mínimo gaguejo, e não é capaz de dizer ‘Leonardo’”? Reconheço que a resposta foi, e vou usar uma palavra que desgosto, desproporcionada. Mas são anos de ser chamado de tudo e mais alguma coisa. E por muito que sobressaia nas mais diversas áreas, parece que estou destinado a viver, num constante engano, a vida de um alter-ego (como diria Cícero), porém de onomástica duvidosa, em que um dia sou Luís, no outro sou Fernando. Porventura por falta de carisma? Será que as pessoas não associam os meus feitos à minha personalidade? Se por um lado não esquecem o que faço, por outro descuram o nome do autor. Como se explica?
Bom, por ora tenho que deixar-me destes dilemas. Encomendaram-me uma pintura sobre a derradeira refeição de Cristo. Treze pessoas numa mesa… “Proibido pintar cálices”. Detesto desenhar costas. Tenho que ver como vou fazer aquilo. Mas darei o meu melhor: o autor desta obra será reconhecido em todo o mundo, tenho a certeza. Mesmo daqui a 500 anos não haverá uma alma que se engane ao pronunciar o nome do grande pintor, o enorme artista, o maior polímata do velho mundo e do que falta descobrir. O meu nome será dado a inúmeras crianças, que o carregarão por várias gerações, todas elas ostentando o inconfundível nomen proprius do magnífico artífice que se destacou nas belas artes, na anatomia, na biologia, na matemática, o inventor, o poeta, o músico. Jamais alguém voltará a baralhar o nome do fabuloso, inesquecível, o inimitável Leandro! Cazzo, Leonardo!!!
Milão, Setembro de 1495;
Leonardo di Ser Piero da Vinci