“Charli XCX – Alone Together” ou a hiper-realidade do hiper-pop
Este artigo pode conter spoilers.
Charli XCX – Alone Together é o nome do novo documentário de Bradley Bell e Pablo Jones-Soler que estreou no festival SXSW 2021 e que está agora disponível na Filmin.
Charlotte Emma Aitchison nasceu em Cambridge (Inglaterra) no verão de 1992. Durante anos sonhou com música, purpurinas, fadas, Spice Girls, namorados, avatars, peluches, anjos, dragões, néones, desenhos animados e Britney Spears. Em 2008 pediu dinheiro emprestado aos pais para gravar o seu primeiro álbum: 14. Lança-o no MySpace. É convidada para atuar em raves ilegais. O seu nickname do MSN transforma-se em nome artístico: Charli XCX.
Nos 12 anos que se seguiram, Charlotte chega ao topo das tabelas mais do que uma vez (entre outras, dá voz a “I love it” dos Icona Pop e assinou “Boom Clap” para a banda-sonora do filme “The Fault in our Stars”). Lança vários álbuns, mixtapes e colaborações com dezenas de artistas, incluindo alguns dos maiores nomes da música pop: Rihanna, Gwen Stefani, Iggy Azalea, BTS, entre outros. Corre o mundo em tour. Ajuda artistas em dificuldade, nomeadamente na comunidade LGTBQIA2S+… E ainda assim, os desafios gigantescos da sua vida profissional, traumas pessoais, stress, responsabilidades e falta de confiança acumulam-se. Charlotte apela, mais do que uma vez, à sensibilização para a saúde mental, como resposta ao isolamento.
Em 2020, quando a primeira quarentena foi anunciada nos E.U.A., Charli XCX decide fazer um álbum. “O processo de criação de um álbum costuma demorar um ano. A Charli tem cinco semanas.” No seu livro “Pensées”, o matemático francês Blaise Pascal afirma: “Todos os problemas da humanidade surgem pela inabilidade do Homem se sentar sozinho e tranquilo num quarto.” Este documentário regista o processo de partilha da criação do álbum online, assim como o escapismo e a catarse alcançada por Charlotte e pelxs fãs da cantora britânica.
Grande parte dxs Angels (super-fãs) de Charli identificam-se como parte da comunidade LGTBQIA2S+. O desapego, a espontaneidade, inquietação, referências, estética e energia que a artista imprime na sua música, encontram paralelos na jornada (interna e externa) em que xs Angels estão. O coração do documentário não está no processo musical. Vais senti-lo a vibrar nas chamadas Zoom, nos lives de Instagram e nas recriações animadas da realidade alternativa onde os participantes expõem as suas fragilidades mais íntimas. A música é mais do que um passatempo ou uma profissão: é um elo forte de ligação e amparo para pessoas com sofrimentos comuns.
O nome do álbum, how i’m feeling now, serve como compromisso. Charlotte assume que, por passar a quarentena com o namorado, quer registar o que está a sentir. “O álbum vai ser sobre a minha relação com o Huck.” O casal está num relacionamento on-off há sete anos, mas nunca passaram mais de onze dias juntos… E, embora existam alguns momentos genuínos, pontuados por uma banda-sonora pouco subtil, nunca fica claro se algo deles transbordou para a música.
O estilo musical de Charlotte é, normalmente, classificado como hiper-pop pela imprensa (embora a artista já tenha escrito no Twitter que “não se identifica com géneros musicais”). O jornalista Will Pritchard, num artigo para o Independent, define hiper-pop como: “(…) um género de música pop auto-referencial, humorístico e excessivo, que tem proliferado rapidamente na era do TikTok. O seu som é caracterizado por melodias de sintetizador tensas, ganchos em auto-tune, distorção, mas também surrealismo e nostalgia em relação à era da internet da década de 2000.”
Desde cedo que Charlotte sonhou com música, avatars, dragões, anjos e Britney Spears. Passou por raves, BTS, vários álbuns e, acredito, alguns esgotamentos. É poético que seja agora, fechada no quarto, que se conseguiu realmente conectar com pessoas que a compreendem, aceitam e, literalmente, adoram. Que habitam uma realidade só sua onde podem, livremente, celebrar a sua existência.