Christophe Dejours: psiquiatra, professor e um dos pais da psicodinâmica do trabalho
A organização do trabalho sempre foi fonte de grandes mobilizações e concertações, especialmente ao nível dos trabalhadores. Estes cada vez mais conscientes das (habitualmente) precárias condições para desempenhar as suas funções e para obter o subsequente proveito desse contributo à sociedade. Dessas lutas, advieram mecanismos de defesa, individuais e coletivos, que puderam confrontar essas vicissitudes. Nesse campo, entra o psiquiatra e professor Christophe Dejours, nascido a 7 de abril de 1949, em Paris. Foi ele um dos pais da área que estuda esses mecanismos, a psicodinâmica do trabalho.
Esta abordagem científica foi, originalmente, pensada na década de 1980, numa fase em que Dejours pretendia coligir aquilo que foi a sua experiência profissional. Em mais de três décadas ao serviço da psiquiatria e da medicina de trabalho, desenvolveu um pensamento estruturado sobre o sofrimento psíquico e os tais mecanismos já aludidos, que, em suma, visavam fazer do trabalho mais do que uma obrigação ou um sacrifício, mas antes uma fonte de realização e de obtenção de prazer. Esta psicodinâmica do trabalho é pensada no âmbito daquilo que é a psicopatologia do trabalho, que incide nesse mesmo sofrimento de foro psicológico sentido e explorado pela atividade laboral.
Foi uma necessidade que adveio do pós-Segunda Guerra Mundial, a de investigar as consequências que as relações de trabalho trariam para a saúde mental. Entre nomes como Paul Sivadon e Louis Le Guillant, pioneiros franceses que hastearam a bandeira do movimento da psicopatologia do trabalho. O trabalho, assim, passou a ser assumido como uma fonte de crescimento e de evolução das estruturas mentais e psíquicas do indivíduo, com os possíveis efeitos positivos e negativos. A organização de trabalho nefasta originaria, assim, conflitos e distúrbios que poderiam culminar em patologias do foro mental. Trata-se de um peso sociocultural que se junta a outros de origem genético e orgânica, mas que não deixam de ser contributivos para o desenvolvimento desses transtornos. Cargas horárias elevadas, níveis de atenção exigidos desproporcionais e obrigações que transcendiam a capacidade do trabalhador foram detetados como exemplos desses catalisadores dos tais conflitos e distúrbios. O pensamento taylorista, vigente então, defendia que o trabalhador seria capaz de se adaptar sem quaisquer dificuldades e que encontraria, assim, o seu ponto de realização. Tratava-se de um olhar que acarretava um processo de hiperespecialização e de divisão de trabalho que cultivava o seu controlo, sendo este, por vezes, desmesurado, já que era feito por um capataz em vigilância constante e ao qual tinha de obedecer.
“Na realidade, não é o progresso tecnológico que determina a transformação das relações sociais, mas a transformação das relações de dominação que abre o caminho a novas tecnologias.”
Entrevista ao Público, 1 de fevereiro de 2010
Dejours doutorou-se em 1974, pela Faculté de Médecine de Paris e dedicou-se cedo à medicina do trabalho, envolvendo-se em hospitais psiquiátricos como forma de estabelecer uma das primeiras charneiras entre o trabalho e a patologia mental. Enquanto se tornou psiquiatra, na década de 1990, o francês dedicou-se, mormente, à carreira académica. Professor no Conservatoire National des Arts et Métiers e diretor de investigação na Université René Descartes Paris V, foi, no decorrer destas funções letivas e investigativas, que desenvolveu uma posição crítica em relação ao trabalho. Nomeadamente à ergonomia (as interações entre o ser humano e as máquinas ou a tecnologia) e aos efeitos psicológicos daí decorrentes. Desse seu trabalho, foi-lhe possibilitado tornar-se membro da Association Psychanalytique de France e o responsável pela direção científica do Institut de Psychodynamique du Travail, no qual foi e é fundamental na missão e na atividade institucional.
Feito o contexto profissional da atividade de Dejours, importa mergulhar, assim, nas temáticas que realmente exercita no seu pensamento e no seu raciocínio. Não mais são do que, tendo subjacentes a organização do trabalho, os efeitos que esta proporciona nos trabalhadores, especialmente no pendor psicológico e mental. Desta reflexão sobre o trabalho, nasce a importância da condição do corpo humano e das suas consequências para com o funcionamento mental. De igual modo, pesa a dicotomia do trabalho prescrito e do trabalho real, que pode desencadear um sentimento ambíguo, que gera sofrimento. Este é um sofrimento ético, que coloca em causa a própria dignidade e o respeito pelos valores humanos, mas que é forçado e condicionado, em especial, pela necessidade externa de produzir, movida por quem está em cima e pelas restantes partes do todo.
Exemplo disto é um dos temas que Dejours mais toca na sua investigação, o suicídio no trabalho, muitas vezes cometido por indivíduos que o consideram forçado pelas condições impostas pela atividade profissional. Na obra “Suicide et Travail: Que Faire?”, de 2009, apresenta o caso paradigmático da France Telecom, onde ocorreram 25 casos destes (como se pode ler na entrevista ao Público). O suicídio é, efetivamente, perpetrado no local de trabalho como se de uma mensagem se tratasse; e é independente de classe profissional e de área. O seu aumento, indica, advém de uma crescente precarização do trabalho (o outsourcing) e do aumento da dinâmica competitiva dentro do espaço laboral, o que aumenta a carga física e psíquica do trabalhador na tentativa de alcançar resultados e melhores dos que os do vizinho. No caso da Renault, uns anos antes, suceder-se-iam cinco suicídios (como também se pode ler na entrevista ao Público), um dos quais acabaria por penalizar a empresa, já que a viúva de um dos trabalhadores a processou e venceu em tribunal. Situações destas somente se tornam mediatizadas posteriormente, já que (quase) ninguém se atreve a vir a público a denunciar o que se vem sucedendo, antevendo as piores consequências para si no espaço de trabalho.
É aqui que, de igual modo, se desenvolvem (a médio e longo-prazo, já que o curto só os permite identificar o sofrimento) os tais mecanismos de defesa, de alcance individual e coletivo, como o desenvolvimento da inteligência de trabalho, nos capítulos particular e geral. É a tentativa de reconhecer e de valorizar cada um e o próprio grupo de trabalho (o reconhecimento da beleza e da utilidade do trabalho), atuando como recompensa pelo trabalho realizado, algo que é esperado pelo trabalhador. Assiste-se, assim, a um processo no qual o “fazer” constitui aquilo que é o “ser”, já que conseguir fazer legitima aquilo que se é e fortalece a tal ideia de identidade. Para além disso, capacita o indivíduo a confrontar-se com as dificuldades com as quais se depara e a partir das quais desenvolve uma posição crítica e, daí, uma resposta que pode solucionar os seus problemas.
São formas que, resumidamente, Dejours encontra como resposta às relações passadas e presentes de dominação e de “servidão” com targets quantitativos constantes, formas estas que procuram que o indivíduo se mantenha equilibrado e imune de eventuais doenças mentais. A necessidade do encontro da autorrealização e desta como prova do que é a identidade de cada um, dando a oportunidade a cada um de contribuir para uma “obra comum”. Para Dejours, a identidade não é mais do que o garante da saúde mental e esta é proporcionada pelo trabalho, não tanto pelo que é feito, mas mais no plano do reconhecimento do que se é. O vazio resultante dessa ausência de identidade resulta na patologia mental. Somente com o desenvolvimento coletivo da atividade laboral é que se permite, efetivamente, que se possa abrir espaço à criatividade de cada elemento, que, para além da realização, procura valorização e integração nessa dinâmica grupal.
Alocando a metodologia de estudo e de análise de Dejours, importa elencar vários prismas a partir dos quais este desenvolve o seu pensamento. No que toca à organização do contexto laboral, incluem-se a divisão de tarefas, o ritmo de execução destas, a disposição do espaço e a própria hierarquia entre os trabalhadores (a divisão de responsabilidades, a forma de gestão e de chefia e as relações estabelecidas com parceiros exteriores, de clientes a fornecedores); mas também às condições higiénicas e de salubridade do espaço de trabalho, para além de questões voltadas para a segurança. No que toca à parte intrínseca do trabalhador, o sofrimento é o grande pilar, que pode ser transformativo ou degenerativo. A existência/falta do equilíbrio entre as exigências laborais e os desejos pessoais é a questão que mais pauta este pensamento e que pode desencadear a construção (ou não) de respostas individuais e coletivas.
A adaptação às condições e pressões existentes, permitindo que se abra algum espaço para que os trabalhadores (todos eles, embora imbuídos nesse processo coletivo) e que possam marcar a sua posição de forma legítima. A inteligência, que permite saber superar o que é prescrito e conseguir algo novo, mas que não deixa de ser uma mais-valia; e que permite, também, que se torne num mecanismo cada vez mais plural, por via da cooperação, é outra ferramenta analisada pelo francês. Tal como esta, precisamente a existência dessa mobilização coletiva, de forma a questionar o seu sofrimento e, a partir deste, poder superar as contradições existentes no seio do trabalho, com o cruzamento de vozes e de posições. Não obstante, o francês não se inibe de apontar a ausência dessa cooperação de uma forma cada vez mais generalizada, em que há uma “traição” ao colega e que não há essa colaboração em prol de uma atividade laboral mais sã. Essas “traições” podem dar-se ao nível de uma conduta que se pode definir como moralmente correta, infligindo-a em prol desses objetivos e prejudicando os mais corretos e honestos. Daqui, podem dar-se situações de assédios, onde estes são os mais fragilizados.
A grande diferença para a psicopatologia do trabalho é que Dejours busca perceber a própria organização do trabalho e entender essa relação dicotómica trabalhador-trabalho. De uma certa maneira, beneficia dos tempos (as crescentes legitimações da sociologia e da psicanálise e o surgimento da ergonomia) para construir um diálogo multi e interdisciplinar. Entender as causas, os porquês dessas “descompensações psicossomáticas”, a partir de uma análise aprofundada daquilo que são os processos desencadeados pelo processo produtivo no qual o trabalho consiste. Como objeto de estudo em concreto, é o sofrimento, que se desdobra no retroativo (nas exigências laborais, que fomentam pressão sobre o indivíduo, na necessidade de desempenhar o pretendido) e no prospetivo (presente e futuro, nas sensações de apatia, mau humor, desmotivação, solidão, isolamento, depressão e esgotamento). É um olhar que se debruça, enfim, nas formas de subjetivação (no estado e nas reações psicológicas) dos membros dessa classe trabalhadora. De igual modo, este olhar psicodinâmico afirma que o ser pessoal e o ser profissional estão interligados e que o trabalho afligirá esse ser pessoal. A indivisibilidade do ser humano é, como tal, uma premissa fundamental neste olhar científico, embora se corra o risco de o ser profissional transbordar e afligir a vida pessoal, o que acontece com regularidade.
Como bibliografia de referência, que permite consultar esta linha de pensamento, Dejours publicou “Travail: Usure Mental” (1980), no qual é feita a tal análise das estratégias desenvolvidas para responder ao sofrimento advindo do trabalho e onde, pela primeira vez, a tónica aponta para a organização do trabalho como aparente responsável pelo desconforto sentido. Algo que os sindicatos não conseguem precaver, já que têm perdido força humana e espaço perante a burocrática organização do trabalho. Para a década seguinte, ficou uma adenda do primeiro livro, sendo esta “De La Psychopatologie à la Psychodinamique du Travail” (1993); para além de “Le Facteur Humain” (1995).
São livros fundamentais naquilo que é o shift feito pelo médico, soltando-se das amarras da psicopatologia do trabalho para se assumir como um dos, senão o, pioneiros da psicodinâmica do trabalho. De que forma os trabalhadores conseguem alcançar esse equilíbrio mental, não obstante as condições de trabalho precárias, perante tantas exigências e constrangimentos? É aqui que dá resposta com os tais mecanismos de defesa que tanto analisou e avaliou, já que os trabalhadores colocavam essa sua inteligência em prática em prol da formação da sua identidade e do encontro do agrado na sua atividade profissional. Com “Souffrance en France” (1998), Dejours vai mais além e arrisca entrar num prisma ainda mais subjetivo, que dialoga com a forma como cada trabalhador interpreta e aborda cada vivência laboral e como reage perante ela, se na forma de defesa ou na forma de um sofrimento que se vai avolumando, incapacitado de produzir estratégias de resposta. Aqui, entra o papel relevante do coletivo, que, por intermédio da cooperação, permite uma resposta agregada e plural ao sofrimento que os une e de uma maior e melhor coabitação no trabalho.
Esta bibliografia permite ainda arrumar aquilo que é o processo evolutivo da psicodinâmica do trabalho, que se torna bastante articulada com o tempo e cujos passos graduais nem sempre se tornam muito claros. Assim, e começando pelas décadas de 1970 e de 1980, nas quais Dejours ainda era somente médico psiquiatra, o estudo passa por perceber o sofrimento mental e por identificar o trabalho como possível fonte desse sofrimento. Iniciam-se, assim, as primeiras investidas sobre aquilo que são as respostas a esse sofrimento. Com o abrir à academia, na década de 1990, o francês incide nesses mecanismos de confronto para manter a sanidade e a saúde no geral e na forma como os trabalhadores procuram investir na sua atividade como fonte de prazer.
O estado da arte culmina já neste século, como a institucionalização da psicodinâmica do trabalho. Esta só se tornou possível com o estudo da construção da identidade do ser profissional e no seu reconhecimento e sublimação. Estes mecanismos já quase consolidados permitiram a Dejours pensar numa ação coletiva transformadora, onde a autonomia e a liberdade de expressão no espaço de trabalho possam conduzir a mudanças, mudanças essas positivas para a preservação da saúde mental dos trabalhadores. Como grande objetivo, para além da redução do desemprego, a transformação dos métodos de organização do trabalho, chave para que se possa tornar a humanidade mais dotada de saúde mental. Métodos que possam colocar a avaliação daquilo que é a produtividade no coletivo e não tanto no singular, que atenda ao bem-estar da sua massa laboral e onde se possam exprimir ideias e preocupações sem o risco de ser censurado ou castigado por isso.
Christophe Dejours, como grande progenitor da psicodinâmica do trabalho, não diaboliza os executivos ou “calimeriza” a classe trabalhadora. Antes, propõe que se repense e, eventualmente, reestruture, algumas organizações do processo laboral. Isto porque, no seu entender, e numa análise que se prolonga por mais de cinco décadas, as suas conclusões são as de que o trabalho (mal orientado e mal pensado) pode ter um papel nocivo na saúde mental dos trabalhadores. Na ausência de reconhecimento e, como tal, de identidade, nos conflitos gerados pelo trabalho prescrito, muitas vezes demasiado restritivo e autoritário, numa planificação do processo produtivo burocrática, repetitiva e exigente. São, todos eles, casos em que o trabalho extrapola o ser profissional e invade o ser pessoal, podendo-o lesar irreversivelmente, não obstante os mecanismos de defesa que se vão desenvolvendo. Nesse estudo de uma vida, Dejours elucida que o trabalho é essencial, embora dotado de condições sadias, para que o individual e o coletivo possam encontrar maior harmonia e realização no que fazem, sem colocar em causa aquilo que ainda podem fazer.